Tchau, Nacional

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Depois de esvaziar as gôndolas, o Nacional colocou o resto em carrinhos e vendeu tudo - até a última escova de dentes infantil.

Depois de esvaziar as gôndolas, o Nacional vendeu o resto em carrinhos – até a última escova de dentes infantil, de R$9,59 por R$2,90.

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Olha o Nacional se despedindo.

Nenhum curitibano vai chorar o fim do Nacional Juvevê porque não houve tempo para criar laços sentimentais como no tempo dos Demeterco.

É uma historia longa, que começa em 1894, com a chegada da família Demeterco a Curitiba. Eram imigrantes ucranianos trabalhadores e morigerados. Bastou uma geração para que em 1924 Pedro Demeterco registrasse a firma Demeterco & Cia e outra para que Roberto Demeterco criasse a rede Mercadorama, que começou na Praça Tiradentes e chegou a seu ponto alto no Juvevê.

Durou 40 anos.

Então a Rede Mercadorama foi vendida ao Grupo Sonae, de Portugal, dono de negócios em dez países, que jogava bruto e arranjou brigas com fornecedores – a mais barulhenta com a cooperativa de leite de São José dos Pinhais. Os produtores denunciaram à imprensa e ao Ministério Público a tentativa de impor preços unilateralmente ignorando até as variações sazonais do custo de produção do leite.

Com a opinião pública do lado dos leiteiros, os portugueses do Sonae decidiram concentrar seus interesses na fábrica de compensados de Pien e passaram o Mercadorama para o Walmart em 2005. Durou 16 anos e a rede virou BIG/Advent, que instalou a marca Nacional.

Ontem foi a despedida. Agora a loja passa à rede Festval com a promessa de vida nova. Chegam arquitetos de interiores com a missão de deixar tudo bonito e reativar o restaurante.

Como era no tempo do Roberto Demeterco.

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Muggiati, o polímata das Laranjeiras

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Na saudação ao nosso novo confrade Helio Puglielli tomei coragem e informei ao público presente que a Academia Paranaense de Letras contava agora com um polímata – alguém de múltiplos conhecimentos em diferentes áreas do saber.

“Bons jornais não se vão. São editados pelos jornalistas que aprenderam a essência da profissão – o cultivo da dúvida, o amor à apuração, a teimosia de não frequentar clubes que te aceitam como sócio.
É assim que nosso novo confrade deve ser visto: como um jornalista que nasceu professor e tornou-se – me perdoem a ousadia – um polímata”.

Agora leio a República, órgão da República Independente das Laranjeiras, onde outro colega de Academia Paranaense de Letras, Roberto Muggiati, inicia a publicação do folhetim “Mistério no Glicério”. Não só oferece um texto cativante como desenha as ilustrações. Coisa de polímata, como logo percebe o editor do tabloide do bairro carioca.

gghghghg

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Então está combinado: temos dois polímatas na APL.

Por enquanto.

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Há 70 anos o Presidente da República foi seduzido pelo governador do Paraná neste Palácio iluminado

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Era sábado, 18 de dezembro de 1954. A nata da sociedade paranaense foi o Palácio Iguaçu para participar do primeiro banquete na nova sede do governo e para ouvir o presidente da República João Café Filho.
Café Filho tirou o discurso do bolso e leu com emoção as palavras que tinha escolhido cuidadosamente. Falou das suas visitas ao Paraná, dos cafezais que explodiam a cada safra recorde e proporcionavam as divisas que o Brasil necessitava. Elogiou a gente trabalhadora, a vocação civilizatória do povo e confessou seu encanto com “o poder de sedução” de seu prezado amigo Munhoz da Rocha.

Tinham sido colegas na Câmara dos Deputados onde Bento brilhava cada vez que subia à tribuna. Nas conversas particulares o assunto era aquela infinidade de questões que o paranaense dominava tão bem. Economia, sociologia, filosofia – tudo nele indicava o estadista, o homem certo para governar o Brasil naquele tempo de mudança.

Mudava a capital, que ia para o Planalto Central. Mudava a matriz produtiva com a Petrobrás, a CSN e o desenvolvimento industrial. Mudava, principalmente, a conjuntura internacional, com a ascensão dos Estados Unidos à liderança do mundo ocidental.

Bento era o avanço sintetizado no palácio modernista concebido por David Azambuja. As linhas retas do edifício de 15 mil metros quadrados apontavam para o futuro glorioso do novo Brasil. Aplausos.

Nunca o Paraná esteve tão perto da presidência como naquele verão de 1954.

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Alguns acham essa afirmação exagerada.

Pertíssimo da Presidência, dizem eles, estivemos em 1977, quando o general Geisel pensou no governador Ney Braga para sua sucessão.

O aprofundamento da violência nos porões da ditadura atrapalhou o projeto de Geisel. Vladimir Herzog é suicidado no DOI-CODI. A multidão indignada se reune na Praça da Sé para orar com o cardeal Arns, o pastor Wright e o rabino Sobel. O Brasil se levanta contra tortura, os desaparecimentos, a insegurança. O ministro da Guerra, Silvio Frota, tenta um golpe dentro do golpe e o presidente tem que recorrer aos generais do alto comando do Exército para afastá-lo.

Aí ferrou. Os generais sentem-se no direito de indicar João Figueiredo, o chefão do SNI.

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Observem a foto aí no alto. É de ontem. Neste inverno de 2025 fulguram as luzes do Palácio Iguaçu.

Mais uma vez, a bola é cruzada na nossa área. Na meia lua, pronto para o arremate, está Ratinho Júnior. Só espera que Tarcísio de Freitas dê um corta-luz e deixe para ele. Está no jornal: Tarcísio só vai na boa. Se a oposição no Congresso, a Faria Lima, o agro e os dois grandes jornais paulistas não conseguirem dizimar a popularidade de Lula, o governador de São Paulo fica para a reeleição.

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Pequena reflexão sobre o pedal, o patrimonialismo e a malandragem no trânsito

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Tá no Standard a notícia de que agora ciclista que furar o sinal é processado por crime e recebe multa de 400 libras (2.800 reais).

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Outro dia morreu mais um menino que pedalava a bike agarrado à rabeira de um ônibus. Centenas de ciclistas e motoqueiros continuam furando o sinal vermelho como se a lei de trânsito fosse apenas para os otários parados em seus automóveis.

Essa coisa de lei que não pega é mania brasileira amplificada em Curitiba. No caso, a lei que não pegou – corrijo: que só pegou parcialmente – é o Código Nacional de Trânsito.

O CNT também proíbe rachas, mas basta passar às 23h pelo finzinho da 7 de Setembro pra ver os Porsches enfrentando os Lamborghini a 250 por hora. (Aqui entra a visão patrimonialista: rico é dono da rua – e azar de quem estiver no caminho, como aqueles dois rapazes assassinados na saida do Shopping Barigui em 2009 pelo deputado a 190 por hora).

É proibido andar na contra-mão, mas é incrível como a gente cruza com idiotas tentando transformar em atalho uma rua de mão única.

Quando alguém fura o sinal vermelho está desobedecendo uma das leis mais antigas do mundo moderno. Existe desde 1868, quando um engenheiro inglês chamado John Peake Knight inventou um dispositivo com luz verde e luz vermelha, iluminado a gás, para acabar com os acidentes entre carruagens e tilburis (charretes), nas ruas de Londres. Outro inglês, o Gregor Tilbury, foi o inventor desse veículo mais barato, de duas rodas.

Por que o ciclista do iFood fura o sinal?

É problema de alta indagação filosófica. Na prática, porém, ele fura o sinal porque é estimulado pelo algorítimo capitalista a entregar depressa as pizzas que transporta nas costas e talvez ganhar mais um dinheirinho.

E por que o ciclista que não é do iFood e o garoto da Harley também furam o sinal?

Porque eles se acham rebeldes, não hã câmera gravando e o carro na outra rua ainda está longe. Sentem-se espertos porque obedeceram a uma razão de primeira ordem (RPO)
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O sinal vermelho, o Código Nacional de Trânsito, as recomendações da mãe são razões de segunda ordem (RJSO).

A importância de ignorar as razões de primeira ordem e obedecer às razões de segunda ordem é explicada aqui em artigo do professor Lênio Streck.

Os ciclistas de Londres que furam o sinal são multados em 400 libras (2.800 reais aproximadamente) e enquadrados criminalmente.

A maioria do povo não fura sinal. Nem protagoniza racha na Sete. Obedece às razões de segunda ordem. Meio por instinto, a maioria é da turma do Aristóteles, entende o fundamento ético da vida em sociedade que a lei te trânsito sintetiza.

Então anote aí:

O verdadeiro malandro para no vermelho.

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Vale a pena enganar o povo?

O Conde Cabarrús defendia junto ao rei Carlos IV o “iluminismo autoritário”.

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Um sábio político do interior ensinava:

-Para ganhar a eleição você tem que falar mal do outro candidato. Então você olha bem a cara dele e decide: se ele tem cara de corno, inventa que a mulher trai ele com o segurança. Se tem cara de viado, conta que ele vive indo a outra cidade onde há uma sauna gay. Se tem cara de honesto, espalhe que ele é ladrão.Todo ladrão que conheci tinha cara de honesto.

Fazia uma pausinha antes de concluir:

-Mas não invente que ele é duas coisas ao mesmo tempo porque aí o povo não acredita.

Foi isso que aconteceu no Brasil. Para virar a eleição inventaram que a urna eletrônica estava roubando voto para o PT. Para melhorar a história contrataram um hacker para invadir o site do TSE e fabricar um mandado de prisão contra o Xandão. Aí convenceram o povo que era preciso ir para o muro do quartel e orar contra o comunismo. No fim invadiram o Congresso, o STF, o Palácio. E quebraram até o relógio de D. João VI.

Só não deu certo porque inventaram muita coisa ao mesmo tempo.

Não é novidade. No Estado Novo forjaram o Plano Cohen. Em 1954, o Atentado da Rua Toneleiros. No ano seguinte, o general Lott deu o contragolpe preventivo no Café Filho. E Jânio? Diziam que estava bêbado. Em 1964, a ameaça comunista. Em 1968, cem mil estudantes na rua, AI-5. Depois a bomba do Rio Centro. Golpes e contragolpes acontecem em todo o mundo. Dependem só de uma história em que o povo acredite.

Um flashback. No final do século 18, mandava na Espanha o Conde de Cabarrús, francês naturalizado espanhol que começou pobre, subiu todos os degraus do poder e chegou a Ministro das Finanças. Convenceu o pais a entrar em guerra com a França e, como faltou dinheiro, intermediou empréstimos com banqueiros internacionais. A Espanha perdeu a guerra mas Cabarrús ficou rico com as comissões.

Um dia, resolveu publicar um livro resumindo suas experiências. E escreveu:

Perfurar tuneis, redirecionar rios, conquistar o oceano; todos estes milagres da inteligência humana são brincadeiras quando comparados com a tarefa de fazer o homem ver e agir de acordo com o seu verdadeiro interesse (1).

Seu dele ou seu de você?

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(1) Francisco de Cabarrús – Sobre los obstáculos de opinión y el medio de removerlos. 1795

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Justiça nega pedido do Careca do INSS para não ser chamado de Careca do INSS


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Tá no Globo.
Às vezes o título mais simples é o melhor.

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Entendendo o nosso cadinho


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Bento Munhoz da Rocha definia o Paraná como um “imenso cadinho racial”.
A expressão vale para o Brasil e vem do inglês melting pot. Parece que surgiu em 1908 como título de peça teatral do britânico Israel Zangwill. Contava a história de David Quixano, imigrante judeu nascido na Russia que foge para os Estados Unidos depois que sua família é massacrada pela violência antissemita.
Para Quixano, os EUA com sua gloriosa mistura de raças era um farol que orientava a viagem de vítimas da opressão de todos os cantos do mundo.

O Brasil também recebeu milhões de imigrantes que fugiam da fome e de perseguições políticas. Outros 5 milhões de imigrantes chegaram acorrentados, em navios negreiros, e só pararam de chegar em 1845 quando o parlamento inglês promulgou o Slave Trade Suppression Act, a Bill Aberdeen, que mandava a marinha real capturar navios que transportavam escravos.

Com as migrações o pais não mudou apenas de cara, como ficamos sabendo agora. Leio no Jornal da USP (https://jornal.usp.br/ciencias/estudo-mapeia-impactos-da-miscigenacao-no-dna-e-na-saude-da-populacao-brasileira/) notícia sobre a pesquisa realizada por cientistas da Universidade de São Paulo, publicada na revista Science. O estudo analisou o DNA de 2.723 brasileiros e brasileiras, representantes das diversas etnias e regiões. Os genomas foram sequenciados em alta definição com a detecção de quase nove milhões de variantes genéticas inéditas, nunca antes identificadas em outra população do mundo.

Imagine, leitor, o que isso pode significar de avanço para pesquisas biomédicas e farmacêuticas, agora customizadas para a população brasileira.
A geneticista Tábita Hunemeier, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da USP, sublinhou um aspecto da descoberta: somos a maior população miscigenada do mundo.

É isso, compartilhe: o Brasil é campeão mundial de miscigenação.

Os pesquisadores acharam 78 milhões de variedades de genoma, que podem influenciar tanto características físicas quando a propensão a determinadas doenças e a resistência a outras. Desse total, 8,7 milhões são variantes que podem ser exclusivas da população brasileira. E 36.637 são potencialmente prejudiciais à saúde.

Que maravilha se o Ministério da Saúde, dono do projeto, (digite no Google Programa Genomas do Brasil para conferir) receber dinheiro para tocar a pesquisa adiante. Daqui a pouco alguém poderá oferecer a cada um o melhor tratamento para cada doença. E poderemos também enviar informações preciosas para os irmãos da África e Europa, de onde vieram nossos avós.

Ah, mas isso vai levar tempo porque o Tesouro está quebrado.
Mentira, o dinheiro está aí. Basta o Congresso redirecionar algumas emendas impositivas do mal, redigidas em português capenga por deputados de DNA perverso.

Garanto que paga a pesquisa e ainda sobre dinheiro.

Com o dinheiro que sobrar – são bilhões – vale a pena analisar bem analisados os genomas dos políticos autores de malfeitos.

Pode ser um tiro n’água. Mas pode indicar que o velho Lombroso, aquele da Antropologia Criminal, não estava inteiramente errado em sua teoria do delinquente nato.
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E se os editorialistas pudessem publicar suas próprias opiniões?

The Harvard Crimson funciona no prédio nº14 da rua Plympton, em Cambridge. Circulava diariamente desde 1873, mas em 2022 tornou-se híbrido – a edição impressa sai aos sábados. Foto de Julian J. Giordano.

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Toda universidade norte-americana tem um jornal. Harvard, a maior de todas, tem três, o Harvard Gazette, da universidade; o Harvard Crimson, dos alunos, e o Harvard Lampoon, de humor.
O Crimson disputaria espaço nas bancas com os melhores jornais brasileiros com a vantagem de ser absolutamente, escandalosamente, até acintosamente independente.
Eis uma prova.
Todos sabem da briga de Harvard com Donald Trump. Foi a única a recusar o cumprimento de exigências presidenciais, entre elas a entrega de dados pessoais dos alunos estrangeiros e a abolição das políticas de diversidade e inclusão.
O presidente retaliou mandando cortar dois bilhões de dólares em verbas federais.
Harvard entrou com uma ação judicial contra a decisão de Trump, Ao mesmo tempo, resolveu rebatizar o Departamento de Equidade, Diversidade, Inclusão e Pertencimento, que virou Departamento da Comunidade e Vida no Campus.
Houve um racha entre os editores de opinião.
O grupo moderado apoiou a resolução e escreveu em editorial: “Alguns imaginam que Harvard está fazendo o que outras instituições fizeram – ceder a Trump. Ao contrário, está se posicionando melhor perante a opinião pública para enfrentar a difícil batalha judicial”.
A minoria radical foi contra e publicou artigo mostrando porque a universidade não deve ceder em nada. “Trocar o nome do departamento não melhora a posição de Harvard junto à opinião pública. Além de obscurecer suas funções e mascarar seus valores, sugere que há algo a esconder – que equidade é alguma coisa vergonhosa. Ao renomear o departamento Harvard rende-se à narrativa de Trump”.
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Trazendo a polêmica para a grande imprensa brasileira: o que escreveriam redatores do Estadão, da Folha ou do Globo, se pudessem publicar suas opiniões sobre as opiniões dos proprietários?
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Vale a pena ver de novo

Jude Law, agora como sucessor do Papa Francisco, é sucesso garantido. A foto é do Guardian. .

O Papa nunca foi tão popular. Prova disso é o filme O Conclave, que disputou o Oscar do ano passado e foi campeão de bilheteria. Mas há outras produções bem sucedidas, como série O Jovem Papa (The Young Pope), onde Jude Law faz o papel de um cardeal norte-americano manipulador e onírico, que se elege Papa.
Rebecca Nicholson, crítica do Guardian, garante que esta série de 2016, além de inteligente, é altamente viciante.
O diretor é Paolo Sorrentino, o mesmo de A Grande Beleza. Ele transforma Jude Law no Papa Pio XIII, um cara ultra conservador que vive em dúvida sobre a existência de Deus, mas não hesita em tomar Cherry Coke Zero no café da manhã – alguém aí já experimentou? – e fumar um maço de cigarros por dia.
Está na hora da Netflix trazer a série de volta. Ou rodar The Young Pope 2, aproveitando o noticiário que chega de Roma, onde os cardeais africanos ganham cada vez maior importância e ousam imaginar que o próximo Papa pode ser um deles. Como o conclave é um centro de intrigas e jogo sujo, não duvide que eleitores tenham entrado com celulares escondidos e estejam tramando a eleição do Papa negro.

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James merecia Lobato

 

 

 

Tinha dez anos quando descobri Monteiro Lobato. Primeiro O Minotauro, depois Geografia de Dona Benta, Reinações de Narizinho e, encantado, O Poço do Visconde. O livro me pegou porque começa assim:

Ao receber o jornal, Pedrinho sentou-se na varanda com os pés em cima da grade. Narizinho, que estava virando a máquina de costura de Dona Benta, disse:

-Vovó, eu acho uma grande falta de educação essa mania que Pedrinho pegou dos americanos de sentar-se com os pés na cara da gente. Olhe o jeito dele…

Dona Benta suspendeu os óculos para a testa e olhou:

-Certos sábios afirmam, minha filha, que quando uma pessoa se senta com as extremidades niveladas, a circulação do sangue agradece e a cabeça pensa melhor.

Releia, por favor.

Receber o jornal…sentou-se na varanda…virando a máquina de costura…suspendeu os óculos.

Percebeu? Não há adjetivos. Só verbos de movimento. Em 90 palavras, Lobato mostra quatro ações, como num roteiro de cinema. É um mestre da narrativa. No meio das ações passa informações. Mostra ao leitor que ele tem um lado no mundo. Lá estão os americanos lidando com assuntos importantes. Aqui ficamos nós, à espera da hora de fazer o mesmo.

Continuando minha carreira de leitor, deparei com As Aventuras de Tom Sawyer e As Aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain. Li o primeiro em uma noite, o segundo levou um tempão e só cheguei ao fim de curioso que sou. Anos depois descobri que Huckeberry Finn é um dos dez maiores romances da literatura norte-americana. Por que demorou tanto a revelação? Talvez porque Tom Sawyer foi traduzido por Monteiro Lobato e Huckleberry Finn passou para o português pela mão de Luiza Maria de Eça Leal, acostumada a trabalhar com histórias para adultos. Lobato corrigiria: histórias de gente grande.

(Importante lembrar que Aventuras de Huckeberry Finn tem desde 2019 uma tradução de José Roberto O’Shea, edição da Zahar, que merece leitura atenta.)

Tudo isso serve para informar que estou lendo James, de Percival Everett. A história é familiar: um menino branco chamado Huckeberry Finn e um escravo de nome Jim estão fugindo juntos pelo rio Mississipi, cada um a procura de sua própria liberdade. Há porém uma diferença: agora o narrador é o escravo Jim (James). Uma delícia conhecer as opinições dos escravos sobre os brancos e ver o afinco com que se dedicam a falar direito a língua errada para manter os brancos na ilusão de que são analfabetos. Uma tristeza não ter Monteiro Lobato para fazer a tradução que os pré-adolescentes merecem – a história das reinações de Jim e Huck no estilo Picapau Amarelo.  O crítico do New York Times diz que James já nasce uma obra prima.

A resenha em https://www.nytimes.com/2024/03/11/books/review/percival-everett-james.html

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