Todos os delegados eram majorengos. Todos os repórteres éramos carrapichos.
Todos os majorengos eram doutores. Até os que só possuiam título de graduação.
Então, eu, carrapicho, subi os 31 degraus da boate Marrocos, pouco depois da meia noite, e avistei o majorengo em sua mesa de pista. Para ser preciso: em sua mesa cativa de pista. Num segundo atravessei o salão.
-Tudo bem, doutor Miguel?
-Olá, pegue um uísque, respondeu o doutor sem interromper a conversa com a deslumbrante Lacksmi, stripper argentina recém chegada à casa, que bebia champanhe Veuve Clicquot.
Sentei e não quis uísque, mesmo sendo um legítimo scotch rótulo preto. Pedi uma coca com uma fatia de limão e fiquei esperando a vez de falar. A casa estava lotada porque era estréia do balé portenho. Oficialmente oferecia lugar para 200 pessoas mas, em noites assim, tolerava-se superlotação em nome do faturamento.
E também em nome da solidariedade humana. Não era justo deixar bons amigos na garoa fria daquelas noites de junho, jogando conversa fora com o velho Cachimbo, que cumpria ordem – só entra se alguém sair. O mandamento não valia para políticos, tiras, carrapichos e amigos do Paulo Wendt, o grande Paulo, o Rei da Noite que trazia astros e estrelas internacionais para a Marrocos, teatro Guaira e clubes sociais.
O garção chegou com a coca e um pratinho de amendoim quando Lacksmi foi para o camarim e o doutor se virou:
-Então, qual é a manchete?
-Vai dar problema no Diario do Paraná, doutor. Um gráfico furou a grave e vão rodar o jornal.
O doutor tinha sido delegado da DOPS, Delegacia de Ordem Política e Social.
-E vocês?
-Não vai ter distribuição. Os piquetes fecharam as saídas dos caminhões.
-Eles têm direito de distribuir jornal.
-Nós temos direito de fazer greve. Tá na Constituição. O Diario Popular e a Ultima Hora entenderam e não vão circular. A Gazeta dispensou todo mundo. A encrenca é no Diário.
-Se eu fosse vocês deixava o jornal sair. O Secretário de Segurança levou uma prensa dos proprietários. Tá balançando.
-E o doutor?
A bateria do maestro Genesio Ramalho deu um rufo, os pistões iniciaram “O Homem do Braço de Ouro”. O majorengo pediu mais gelo no uísque e falou baixinho.
-O doutor vai assistir ao show.
Peguei minha coca e fui para o fundo do salão, onde estavam os repórteres Ali Chaim, Cem Gramas e mais dois que eu não lembrava o nome. Batemos palmas para o balé e mais ainda para Laksmi, cujo strip tease era puro balé. A luz mudava, um spotlight jogava luz sobre a artista. Sax, clarineta e flauta tocavam o trecho do balé Bela Adormecida intitulado Variações do Pássaro Azul. O plateia veio abaixo, um gigolozinho de terno preto e cabelo abotoado gritou:”Sucesso!” Terminei a coca e voltei para a frente do Diario do Paraná sem boas notícias.
Nada a fazer. Ainda bem que chegou o lanche – café com leite e sanduiches – feito na casa do Nelson Comel. Alguém comparou aquela frugalidade com os filés em bandejas de prata que garçons do Ile de France traziam para os fura-greve. Tomara que tenham indigestão.
Os jornais impressos em fardos de cinquenta – “Greve fracassa!” era o titulo da primeira página – foram colocados no caminhão da distribuição.
Amanheceu. Havia dois piquetes, um de cada lado da rua. O caminhão começou a sair.
-Senta todo mundo!
Os grevistas sentaram, o caminhão parou. A greve ia vencer, quando chegou o Corpo de Bombeiros. Um tenente desceu do caminhão vermelho e veio falar com o piquete. Vão embora, temos ordem de desbloquear a rua. Ordem de quem? Do governo.
Do orelhão da esquina avisei os deputados Luiz Alberto Dalcanalle e Leon Naves Barcelos. O secretário de Segurança também foi informado e disse já vou ai. Os vizinhos começaram a descer para ver no que dava aquilo. Já eram 6 e meia e nada se resolvia. Então o tenente se irritou.
-Saiam ou passo por cima!
-Ninguém sai.
O tenente deu ordem de avançar, o sargento na boleia não avançou. Transtornado, o tenente disse saia daí e assumiu o caminhão. Botou uma primeira e veio vindo. Os deputados gritaram: “É assassinato!” Um morador correu e sentou na rua ao lado dos grevistas. O tenente continuou avançando. A tragédia era inevitável.
Então, do nada, surgiu o doutor Miguel. Paletó aberto, 38 na cintura, subiu no degrau do caminhão e ordenou: “Pare, tenente, ou te prendo agora!”
O tenente parou. Parecia aliviado com a ordem. Os deputados – agora havia outros – deram parabéns ao militar porque não se mata irmão trabalhador, o Secretário de Segurança apareceu e defendeu o entendimento. Por um buraco no muro dos fundos, os fura-greve começaram a transportar jornais. Uns 200 chegaram às bancas, onde foram empilhados ao lado do jornal “A Greve”, impresso na máquina do Diário Popular. O proprietário Abdo Aref Kudri emprestou a chave da gráfica ao comando da greve.