Naquela segunda-feira de frio e garoa fina, Doc Franco, 32 anos, delegado do 6º Distrito, tinha motivos para se sentir infeliz. Além do doloroso fora da namorada, a bronca da vizinha – megera estridente inconformada com o som de seu sax (a tentativa de replicar Paul Desmmond em Blue Rondo a la Turk foi até meia noite mesmo?). E, para complicar, o próprio fracasso como encanador. Agora, enquanto não chegava o profissional, era obrigado a fechar o registro geral da água.
Dormiu mal e cedinho o chefe ao telefone.
-Bom dia, chefe.
-Mau dia, Franco. Teve fuga no Ahu. Oito bandidos cheios de pó e anfetamina andam por ai. Dois latrocidas.
-Armados?
-Facão e estoque, mas daqui a pouco arranjam revolver. Mobilize a equipe.
Fez um café que como sempre não deu certo e entrou no Mustang 69. Preto, joia descolada num picareta que lhe devia um favor. Inseriu um Bud Powell no toca-fitas do carrão e acelerou até o Cajuru. Lá ninguém sabia da fuga em massa, da cidade em polvorosa, das famílias com medo. Com o escrivão em licença-prêmio, dois agentes jogavam damas, o mais barrigudo acabava de fazer uma rainha.
-Bom-dia, colegas, chama o super pra mim?
-Saiu para ver uma ocorrência, doutor.
Não acreditou. O superintendente inútil devia estar se enchendo de chá de gengibre com mel para curar a ressaca. Não disse nada e seguiu para a sala de espera, onde quatro cabeças se voltaram para ele. O soldado que os conduzia explicou.
-Agressão entre cunhados, doutor, com lesões corporais.
-Todo mundo na minha sala.
Havia duas cadeiras em frente ã mesa do doutor. Nelas sentaram o agressor e o agredido, este com olho roxo e grande calombo na testa. As duas testemunhas em pé.
-Ele me deu uma cabeçada, doutor. À traição – iniciou o de cabelo loiro escorrido, que se chamava Pedro e falava com forte sotaque da Barreirinha. Sabe como, né? Caroça, corente, briga de ripa, essas coisas.
-É verdade?
-Ele me agrediu primeiro, defendeu-se o negão com cara de babalorixá. –Não tenho de aguentar xingamento em minha casa.
-Xingou ele?
-Só disse a verdade. Esse vagabundo me roubou.
-Verdade? Você roubou ele?
-Ia devolver.
-Devolver o que?
-A bacia.
Franco fez ar contrariado..
-Deixa eu entender. Vocês vieram parar aqui por causa de uma bacia. É de ouro?
-É da minha mãe.
O babalorixá aproveitou a deixa.
-Mixaria de bacia, doutor. Estava furada, a sogra pediu para eu consertar. Então teve o problema…
-Cala a boca!
França sentiu que estava na hora de assumir seu papel de majorengo. Com voz de baixo profundo perguntou:
-Você tem medo de eletricidade, negão?
-Tenho.
-Tenho sim senhor! – corrigiu Franco com um berro.
-Sim senhor.
-Portanto não quer levar um choque elétrico nesse rabo preto.
-Não senhor.
-Então me diga que vai devolver a porra da bacia.
-Vou devolver a porra de bacia, doutor.
-E pede desculpa.
-Desculpa, doutor.
-Não pra mim. Pede desculpa pro cunhado.
Hesitação. França subiu mais um tom.
-PEDE DESCULPA, CACETE!
-Desculpa, cunhado.
-Que beleza! Agora em inglês, porque Curitiba é a terra de todas as línguas. Diga: ai ame sórri.
-Ai ame sórri.
-Agora em francês. Diga jê suí desolê.
-Jê suí desolê.
-Agora em polaco. Diga – virou para a vítima – como é que se diz sinto muito em polaco, polaco?
-Tak mi przykro.
-Ouviu? Diga táqui mi pisicró pro teu cunhado e amigo.
– Táqui mi pisicró.
-Muito bom. Só falta um beijo no olho dele, pra curar o machucado mais depressa.
O babalorixá vacilou um pouco, então delicadamente beijou o olho do cunhado.
-Agora você, polaco.
– Eu o quê, doutor?
-Tua vez de beijar ele. Diga que aceita a desculpa.
O polaco perguntou cauteloso
-Pode ser na testa?
-Beija onde quiser. Depois sumam.
Quando eles sumiram, os tiras abandonaram o tabuleiro de damas. O mais velho perguntou cheio de respeito:
-O doutor trabalha com gerador de manivela?
-É meu instrumento de investigação preferido, com dois motores de seis volts.
Os dois se olharam. Ele tá nos gozando?
-Vou dar mais uma informação aos colegas. Não gosto de me jactar, mas na Furtos e Roubos meu nome de guerra era Doutor Volts. Só de ouvir que o Doutor Volts ia descer para o interrogatório a malandragem começava a dar o serviço.
Fez uma pausinha e autorizou.
-Podem espalhar.
Saiu. Antes de dar a partida no carrão, trocou a fita de Bud Power pelo tema de Dirty Harry, bom para acelerar pela BR-116 até o Atuba, por onde os fugitivos da Prisão Provisória deviam passar daqui a pouco.
Elementar, grande Lalo Schifrin!
*
(*) – Publicado antes na coluna “Coisas e Gente”, da velha Ultima Hora de Curitiba