Morre a doutora Dúlcia, engenheira que cuidava da Curitiba que ninguém vê – e via a Curitiba que ninguém cuida

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A doutora Dúlcia Auríquio, falecida ontem, foi uma heroína de Curitiba.

Engenheira recém formada, prestou concurso, assumiu um cargo no setor de obras e nunca mais saiu de lá. Estudiosa, devotada ao serviço público – à missão. Eis alguém que merece ser nome de rua, de praça ou – melhor do que tudo – ser nome de rio.

Seu carinho pelos rios da cidade – Passauna, Barigui, Balém, Atuba – era tanto que todo mês de outubro vestia botas impermeáveis e se enfiava pela rede subterrênea de rios encaixotados e túneis de escoamento de água de chuva. Aos auxiliares ditava relatórios sobre os pontos de estrangulamento, onde a rede estenosada poderia não resistir às chuvas do verão e provocar inundações.

Quem acompanhou essas inspeções relatava horrores. Os curitibanos descartavam no rio tudo que pareçia inútil: cobertores, panelas, louça sanitária, sofás, a imensa televisão da sala com seu tubo de raios catódicos cheio de chumbo, mercúrio, bário e outros venenos mortais. Era ainda maior a quantidade de colchões, edredons, isopor, brinquedos de plástico, pneus, toneis e outras inutilidades.

Os relatórios não ficavam na Secretaria de Obras – iam para a mesa do prefeito onde inspiravam campanhas educativas, como as de Jaime Lerner (SE-PA-RE e troca de lixo por alimentos orgânicos, para só citar as mais afamadas). Os prefeitos gostavam da doutora Dúlcia e ai deles se não gostassem. Um prefeito de Curitiba desinteressado da questão ambiental? Melhor ficar longe de alguém assim.

Um dia, para entender Curitiba, pedi ajuda de sua sobrinha Lucélia e consegui uma longa entrevista.

-A gente pode almoçar com ela?

-Só se for no Colibri.

O fraco da doutora Dúlcia era a cozinha do restaurante Colibri, na Lisimaco da Costa, onde às vezes o prefeito ia almoçar com algum convidado.

Durante mais de duas horas anotei a história daquela engenheira formada na Universidade do Paraná no tempo em que mulheres não faziam engenharia. Antes dela só a pioneira Enedita Alves Marques e Franchete Garfunkel, depois Rischbieter, que também era devotada funcionária da cidade. É bom repetir: da cidade. Elas não trabalhavam para a prefeitura, muito menos para determinado prefeito. Trabalhavam para a cidade de Curitiba.

Ou talvez seja melhor mudar a preposição: trabalhavam pela cidade de Curitiba.

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