Tinha dez anos quando descobri Monteiro Lobato. Primeiro O Minotauro, depois Geografia de Dona Benta, Reinações de Narizinho e, encantado, O Poço do Visconde. O livro me pegou porque começa assim:
Ao receber o jornal, Pedrinho sentou-se na varanda com os pés em cima da grade. Narizinho, que estava virando a máquina de costura de Dona Benta, disse:
-Vovó, eu acho uma grande falta de educação essa mania que Pedrinho pegou dos americanos de sentar-se com os pés na cara da gente. Olhe o jeito dele…
Dona Benta suspendeu os óculos para a testa e olhou:
-Certos sábios afirmam, minha filha, que quando uma pessoa se senta com as extremidades niveladas, a circulação do sangue agradece e a cabeça pensa melhor.
Releia, por favor.
Receber o jornal…sentou-se na varanda…virando a máquina de costura…suspendeu os óculos.
Percebeu? Não há adjetivos. Só verbos de movimento. Em 90 palavras, Lobato mostra quatro ações, como num roteiro de cinema. É um mestre da narrativa. No meio das ações passa informações. Mostra ao leitor que ele tem um lado no mundo. Lá estão os americanos lidando com assuntos importantes. Aqui ficamos nós, à espera da hora de fazer o mesmo.
Continuando minha carreira de leitor, deparei com As Aventuras de Tom Sawyer e As Aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain. Li o primeiro em uma noite, o segundo levou um tempão e só cheguei ao fim de curioso que sou. Anos depois descobri que Huckeberry Finn é um dos dez maiores romances da literatura norte-americana. Por que demorou tanto a revelação? Talvez porque Tom Sawyer foi traduzido por Monteiro Lobato e Huckleberry Finn passou para o português pela mão de Luiza Maria de Eça Leal, acostumada a trabalhar com histórias para adultos. Lobato corrigiria: histórias de gente grande.
(Importante lembrar que Aventuras de Huckeberry Finn tem desde 2019 uma tradução de José Roberto O’Shea, edição da Zahar, que merece leitura atenta.)
Tudo isso serve para informar que estou lendo James, de Percival Everett. A história é familiar: um menino branco chamado Huckeberry Finn e um escravo de nome Jim estão fugindo juntos pelo rio Mississipi, cada um a procura de sua própria liberdade. Há porém uma diferença: agora o narrador é o escravo Jim (James). Uma delícia conhecer as opinições dos escravos sobre os brancos e ver o afinco com que se dedicam a falar direito a língua errada para manter os brancos na ilusão de que são analfabetos. Uma tristeza não ter Monteiro Lobato para fazer a tradução que os pré-adolescentes merecem – a história das reinações de Jim e Huck no estilo Picapau Amarelo. O crítico do New York Times diz que James já nasce uma obra prima.
A resenha em https://www.nytimes.com/2024/03/11/books/review/percival-everett-james.html
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