O Julio se foi, ficou a ideia

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.Julio Gomel (1931 – 2016)

 

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No ano passado, o médico Julio Gomel foi até o Video 1 para gravar um depoimento, a pedido do Luiz Renato Ribas. Já estava doente. Dormia pouco e mal; passava o dia cansado. Mas entrou no pequeno estúdio e falou durante 60 minutos. Agora, depois de sua morte, ao assistir ao vídeo vejo que Julio estava nos entregando seu legado de ética profissional, de compromisso com os carentes e de lealdade com os amigos.

 

Poucos entenderam Curitiba tão bem – a peculiar condição de uma cidade com fama de rica habitada por gente muito pobre. Da capital com pose cosmopolita atada a preconceitos da província.

 

Isso se deve, em boa parte, ao pai Davi, imigrante turco que chegou em 1920, ao encontro do irmão Benjamin, que vindo em 1911. Eram judeus sefaradim, cujos antepassados viveram séculos na Peninsula Ibérica. Cultos, poliglotas, falavam grego, inglês, francês e espanhol. Traziam o gosto pela convivência calorosa em famílias onde as mulheres tinham nomes românticos como Linda, a mãe deles, Alegre, a irmã, e Felicidade.

 

Julio estudou na Escola Americana, de Belmiro Cezar, do Colégio Estadual, e da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Paraná. Formado, conseguiu uma vaga como residente na clínica de urologia do Hospital do Servidor Público do Rio de Janeiro, dirigida pelo professor Guerreiro de Faria, o maior especialista dos anos 1950.

 

Foi lá que ficou famoso. Atendeu, na emergência, o vice-presidente da República, João Goulart, que sofria crise renal aguda. Após 14 dias Jango teve alta. Gostou tanto do profissionalismo daquele médico curitibano de quem ficou amigo que pediu ao presidente Juscelino Kubitschek um emprego para ele no SAMDU.

 

Em 1957, Gomel foi trabalhar no posto de saúde de Duque de Caxias, região pobre e violenta do Estado do Rio. Não era uma unidade com grandes recursos. Muitos partos eram realizados na ambulância. Balas de calibres variados alojavam-se no corpo dos pacientes. Quando era grave, a ambulância tentava chegar até os hospitais da cidade. Médicos, doentes e as famílias criavam entre eles elos de solidariedade que nascem do convívio intenso e da superação de todo tipo de carência.

 

Um médico não pode separar a atividade profissional dos problemas sociais, ensina Julio no vídeo. Sem entender a doença da sociedade ninguém salva o doente.

 

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Era um inventor. Inventava amigos por toda parte. Exerceu uma liderança desinteressada, feliz, bem humorada, que atraia todos para participar de seus projetos. Um dia me ofereceu um dos duzentos títulos de imaginário clube de natação que ele e o empresário Berek Kriger desejavam criar para colocar Curitiba no mapa do esporte brasileiro. Era um castelo no ar. Mas ninguém se arrependeu de ficar dono de uma cota do Clube do Golfinho, que logo virou realidade, com arquibancada, sede social, ginásio, três piscinas – uma de 50 metros, um luxo, na Cruz do Pilarzinho.

 

O Golfinho criou a rotina das clínicas de natação com professores estrangeiros.  A garotada começou a ganhar competições enfrentando as equipes do Curitibano, Circulo Militar, Cefet. E também as de fora –  Fluminante, Paulistano, Minas Tenis Clube.

 

Com o Lar Bom Caminho foi diferente. A entidade assistencial já existia, dirigida por um oficial reformado, que cuidava de rapazes até a hora do serviço militar. Imaginava que ali conseguiriam uma carreira, um curso de sargento, uma aposentadoria como oficial. O grupo de médicos que Julio Gomel reuniu pensava em necessidades mais urgentes. Centenas de recém-nascidos com problemas herdados de pais pobres, muitos com problemas na Justiça. Eram doenças difíceis de tratar. Como salvar um bebê filho de mãe com sífilis ou HIV, sem acesso aos grandes hospitais?

 

Deu certo. Vieram mais médicos, equipes de apoio e doadores. As histórias vividas no Lar dão roteiro de cinema. Provam que cooperação funciona e generosidade não é só uma palavra para enfeitar discurso. Um pouco de criatividade ajuda. Surgiu o Jantar das Estrelas que, durante 17 anos, reuniu no Curitibano famosos chefs da cozinha. Sem cobrar nada, elas produziam jantares de gala e levantavam recursos para fortalecer o orçamento do Lar.

 

Houve doações improváveis, como a do jornalista Candido Gomes Chagas – um cara temido pelas brigas com políticos sustentadas pela revista Paraná em Páginas, com fama de mal humorado. Quem podia imaginar que Candinho tinha um grande coração? Julio sabia, tanto que não se surpreendeu ao ser informado, com a morte de Candido, que ele havia doado grande parte de seu dinheiro ao Lar Bom Caminho. Justamente numa hora em que a instituição passava dificuldade com a chegada da primeira onda de crise econômica.

 

O momento é difícil. No meio de tantos problemas, com a crise econômica que parece não ter fim, como encontrar gente como Julio Gomel para assumir as ações de que a sociedade precisa? Outro atleticano fanático capaz de fazer amizade profunda com o coxa-branca Evangelino Neves? Outro médico disposto a atender de graça os jogadores do rubro-negro – e os amigos deles de outros clubes também?

 

Talvez a solução seja mais uma vez chamar os chefs, convocar a cidade para um novo Jantar das Estrelas.

 

Ninguém é humanitário de estômago vazio.

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