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Outro dia, alguém escreveu que o mundo intelectual abriga três categorias: pensadores, pobres pensadores e gente que faz análises na Globo News. Na tela, alguns estão berrando por intervenção militar, isto é, golpe de estado, outros falam em revolução popular e a maioria reza para tudo voltar ao que era antes da greve dos camioneiros.
Intervenção militar é improvável. Voltar ao que era antes é impossível, porque as sociedades vivem em lenta e inexorável evolução. Então vamos falar de revolução.
Thomas Carlyle, escrevendo em 1789, declarou que revoluções reais são um “fenômeno transcendental dos Tempos Modernos”, que ocorreriam apenas uma vez em cada milênio. Ele claramente exagerou, mas teve uma intenção ao fazê-lo. Ao lado da chinesa, russa e chinesa, a revolução iraniana pode ser classificada entre as poucas que claramente deram nova forma à sociedade do Irã”.
Quem diz isso é Ervand Abrahamian, na New York Review of Books (nybooks.com) analisando o livro Iran: A Modern History, de Abbas Amanat (Yale University Press, 979 pp., $40.00).
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Para muitos americanos, o Irã é um enigma empacotado em um conjunto de contradições incompreensíveis e altamente inflamáveis. Durante décadas, antes da criação da República islâmica no final dos anos 1970, o Irã era admirado como um aliado indispensável dos Estados Unidos, que comprava armamento com desconto e funcionava como uma espécie de polícia do Golfo Pérsico.
Hoje, é retratado como um adversário implacável e ameaçador, constantemente tentando expandir sua influência do Mediterrâneo ao Oceano Indico.
Durante décadas, o xá da Persia fazia visitas anuais à Casa Branca para oferecer e receber gentilezas. O atual Lider Supremo não visita países estrangeiros, muito menos o Grande Satã.
Durante décadas, senhores bem apessoados, rosto escanhoado, usando ternos italianos e gravatas de seda lideraram o Irã. Conversavam em francês e inglês fluentes. Eram criticados por serem autocráticos. Os americanos não os criticavam. “São os nossos autocratas.”
O contrário acontece com os atuais líderes, que usam turbantes e ostentam barbas grisalhas. Ou com seus tecnocratas de barbas aparadas, profundamente descrentes não apenas da política externa norte-americana mas também de muitos aspectos de sua cultura – exceto da tecnologia nuclear.
A mudança foi rápida em quinze meses, entre 1977 e 1979, a monarquia do xá foi substituída pela República Islâmica. Isso levou a uma radical transformação do sistema político, de legitimação do governo, e do conceito de ordem social.
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A Revolução Islâmica foi acompanhada de considerável violência, embora não tanto como os revolucionários gostam de proclamar, e teve um impressionante apoio popular. O resultado mais visível foi que um milhão de pessoas deixaram o pais.
Os americanos fitavam hipnotizados as imagens da primeira revolução transmitida pela TV e logo ultrajados pela cobertura diária da crise dos reféns na embaixada dos USA em Teerã, que durou 444 dias.
Desde 1980 os EUA advogam abertamente a mudança de regime e mesmo ataques militares contra o Irã. Os dois países desfrutaram uma breve detente em 2015, quando Barak Obama assinou o acordo nuclear e substituiu o discurso sobre derrubar o regime por apelos para mudança recíproca de atitude.
O interlúdio terminou abruptamente em 2017, com Donald Trump, que denunciou o acordo. A ordem, novamente, é desestabilizar a República Islãmica – e pode ser mais uma das batalhas que os ultraconservadores vão perder, ao lado do Vienã, da Coreia, da antiga Indochina, do Iraque.
Qualquer tentativa de mudar o regime iraniano muito provavelmente levaria ou à guerra ou a mais uma crise continuada, capaz de arrastar os EUA mais fundo em seu envolvimento no Oriente Médio, especialmente no Afganistão, Siria e Libano. A única vantagem dessa crise seria distrair a opinião pública dos sérios problemas internos que a administração
Trump está enfrentando.
A New York Review of Books recomenda com entusiasmo esse Iran: A Modern History. Mas cuidado: são 900 páginas em inglês.O autor, Abbas Amanat, é professor de história em Yale e produziu um trabalho que a revista classifica de “majestoso”, comparável à Identidade da França, de Fernand Braudel, ou a História dos Povos Arabes, de Albert Hourani. Aliás, Hourani foi mentor de Amanat, e os dois se identificam na valorização da importância da continuidade e da persistência na história política e social dos povos, que eles consideram uma questão de evolução gradual e não de súbitas mudanças.
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P.S. – Camioneiro ou caminhoneiro? As duas formas estão certas. O site Pé na Estrada explica: “A palavra é nova, até porque, caminhões são novos, têm pouco mais de 100 anos. Para nós, a origem está no francês Camion, que foi “aportuguesado” e virou camião. Quem dirige um camião é um camioneiro. Assim é em Portugal até hoje. Vejam os sites das montadoras por lá.”
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