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É pior que ser adicto em novela. O Netflix está para a novela como o crack está para maconha batizada dos anos 1960. Mil por cento mais forte, a dependência é imediata – não há intervalo comercial, ninguém sonha em desligar. Quando termina você clica para ver mais.
Uma adolescente, filha de amigos, passou várias noites acordada, varada de sono, mas com o olho vidrado no Dr. House. Quando a família se deu conta, não havia mais jeito – a menina já sabia diagnosticar dezenas de doenças raras, reclamava que as ressonâncias magnéticas não eram feitas na hora, como nos hospitais americanos, e dedicava soberano desprezo a quem não conseguia reconhecer uma simples neurocistocercose. Uma noite apareceu em casa com um exemplar de glossina palpalis. Que bicho é esse? É o vetor da doença do sono. A família derrotada deixou que dormisse com o vetor no quarto. Dentro de um copinho, implorou a mãe.
Por que uma série do Netflix vicia mais que novela? É graças ao “perigo do meio”. Conheço o truque desde o tempo do Cine Broadway, que domingo às 2 da tarde exibia dois filmes e dois seriados. Umas cinco horas de cinema sem interrupção, a não ser para emendar o rolo do filme. Quase nada comparado às maratonas de hoje.
O seriado era sempre igual: mocinho, bandidão, amigo do mocinho gordo e engraçado, namorada do mocinho, magra e tímida, nunca vi os dois se beijando na boca. Sabia que tinham um caso porque ela fazia torta de maçã para ele. Roteiro simples: mocinho chega no armazem, bandidão provoca, brigam, bandidão apanha e vai armar cilada no caminho de volta, só não tem êxito porque o cavalo branco do mocinho (tinha esquecido o cavalo) pressente o perigo e relincha. Tiroteio, correria, o cavalo tropeça na armadilha armada pelo capanga do bandidão e o mocinho é arremessado longe. Fica pendurado num galho de árvore, à beira de um precipício, a cachoeira lá embaixo indica que é perigo mortal. O bandidão se aproxima para quebrar o galho da árvore e ver o mocinho despencar. Close na cara barbuda e má. Corte. O que vai acontecer? Conseguirá escapar? Haverá justiça para o bandidão? Proximo episódio.
A série favorita (12 milhões de espectadores por episódio) da TV aberta de 2014, The Good Wife, produzida por Ridley Scott, é exemplar em matéria de perigo do meio. Suspense para todo lado. Para começar, a Good Wife, Julianna Marguilies (49 anos) ganhou vários prêmios de melhor atriz, inclusive o cobiçado Globo de Ouro. Atraente, honesta e corajosa, ele inspira milhões de mulheres traidas pelo marido, que vão a luta e conquistam sucesso e respeito. Seu braço direito, a detetive bissexual Kalinda enfrenta um inimigo também detetive dentro do escritório de Lockhart & Gardner. A advogada Alicia Florick é mulher enganada do promotor Peter Florick, tem um namoro por enquanto inocente com chefe, o advogado Will, e é olhada com interesse pelo lobista Eli Gold. A sócia esquerdista de Will, Diane, já sofreu uma tentativa de golpe interno quando o novo sócio tenta convencer Will a dispensar a parceira. E agora, os perigos do meio: a) o escritório vai falir porque as dívidas são grandes? b) a sociedade vai rachar? c) Alicia vai ficar com o marido, com o colega ou com Gold? d) Vai rolar alguma coisa entre ela e Kalinda? Próximos episódios.
Gosto de Dawnton Abbey da ITV britânica, porque não tem mocinha ingênua, nem mocinho indômito – a estrela é a luta de classes. Ela aparece a cada momento em que um serviçal do andar de baixo espiona um morador do andar de cima, como quando o volante chantageia sem sucesso o aristocrata com quem teve um caso homossexual. A aparição de um advogado de Manchester como herdeiro do castelo e do dinheiro obriga a família a imaginar um casamento de conveniência, para indignação da avó Maggie Smith. A classe média, andar do meio é composta de gente que não sabe caçar e trabalha a semana inteira, para descansar no weekend. Ridículo trabalhar, mas talvez isso seja necessário depois da 1a. Guerra Mundial (1914-1918). E dai? Sai casamento? A herdade será salva? O empregado cúpido vai ter sucesso em tornar-se mordomo? Teremos um amanhã sem mordomos? Próximos episódios.
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