“A democracia precisa ser sustentada pela mesma vontade política que pode destruí-la”
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David W. Blight, professor de História na Universidade de Yale, estudioso da escravidão, faz uma comparação entre o momento atual dos EUA e a Guerra Civil dos anos 1860. Neste artigo, publicado na New York Review of Books, Blight indaga se os republicanos serão os novos Confederados. O leitor pode refletir sobre como são profundas (e assustadoras) as semelhanças entre a crise americana e a brasileira.
A democracia funciona melhor quando não espelha profundas divisões sociais do país. Todos os lados conseguem lidar bem com a derrota e a transição governamental.
Quando as bandeiras de Trump substituem aquelas da Confederação em caravanas de caminhões e em comícios republicanos, estamos à beira de assistir a uma guerra pelos resultados da eleição presidencial – talvez a primeira desde 1860 – quando é possível que milhões de cada lado não consigam aceitar a derrota.
O Partido Democrático é uma coalisão unida precariamente pela ideologia da inclusão, o compromisso com governo proativo, a fé no conhecimento humanístico e científico, e a rejeição do que é percebido como uma monstruosa presidência de Donald J. Trump.
Republicanos, com algumas notáveis exceções, são um partido unido pelo compromisso com a redução de impostos, o poder empresarial, a guerra ao aborto, o nacionalismo branco, e o desejo de poder.
Somos basicamente duas tribos políticas lutando uma guerra fria cujo resultado pode determinar se nossas instituições podem sobreviver ao conflito fomentado pela pandemia, o racismo, o colapso econômico, a morte da Suprema Corte, e a campanha de reeleição de um presidente autoritário.
Como isso pode acontecer – não nas ditaduras de Belarus, Hungria, Turquia ou Venezuela, mas aqui nos Estados Unidos, durante o 233º ano de Constituição?
As respostas são históricas e estruturais.
Houve uma campanha de supressão do voto conduzida por um dos partidos. Mudanças demográficas e os 15 milhões de novos eleitores surgidos durante a administração Barack Obama assustaram os republicanos – hoje majoritariamente um partido de gente branca – e os fizeram temer pela existência.
Leis exigindo identificação dos votantes, redução dos locais e dias de votação, expurgo nas listas de eleitores, restrições ao voto pelo correio e evisceração do Voting Rights Act de 1965, além de uma constante denúncia sobre “fraude eleitoral” sem provas – assim os republicanos enfraqueceram o sistema eleitoral com chicanas antidemocráticas.
Eles estão assustados ainda com os resultados das eleições de meio-termo de 2018, quando o comparecido de eleitores democratas entre 18-29 anos foi de 67% e dos eleitores entre 30-44, de 58%. Cerca de 30% do eleitorado agora é negro, hispânico, asiático-americano ou outras minorias étnicas. O nacionalismo branco colide com o futuro. Não há maioria republicana na América, exceto em dia de eleição. Ela depende de quem vota e de quem tem permissão para votar.
O presidente Trump frequentemente alega que “o único jeito de nós perdermos é se a eleição for roubada”. Ele adora arrancar aplausos da multidão alertando-a para “estar alerta com a fraude e o roubo” de votos pelos democratas.
Todo americano razoavelmente informado sabe que a única coisa fraudada nesta eleição é o próprio Colégio Eleitoral (em favor de estados menos populosos que tendem a ser republicanos), a instituição decididamente antidemocrática do Senado (a maioria republicana representa uma população 15 milhões de eleitores menos que os democratas) e as mil maneiras que a presente administração manipula agências governamentais para influenciar o voto.
O Partido Republicano tornou-se um novo tipo de Confederação. Eles são secessionistas sem adotar a revolucionária atitude de declarar uma secessão. São rebeldes obcecado pelo poder que lutam para preservar uma América anacrônica burlando o sistema.
Eles deram um jeito de ganhar a presidência duas vezes sem maioria de votos, de manter o controle do Senado embora vastamente minoritários no eleitorado nacional, e construir uma maioria na Suprema Corte negando uma indicação a um presidente democrata em exercício.
De acordo com a historiadora Stephanie McCurry em Confederate Reckoning (Ajuste de Contas Confederado) , de 2010, os Confederados de 1861 tinham um “orgulho perverso” pelo seu desajuste com o mundo da época. Um ministro sulista definiu a Confederação como uma minoria virtuosa de “trezentos e cinquenta mil homens brancos” comandando o trabalho de “quatro milhões de escravos africanos” a serviço da civilização. A “nação” sofreu colossal derrota quatro anos depois; semelhante destino político pode cair sobre um Partido Republicano descolado do mundo de hoje.
Essa nova Confederação é parte regional e parte rural (uma população em declínio). Sabe o que odeia: a Costa Leste e a Costa Oeste, cidades diversificadas, igualdade no matrimônio, certos tipos de feminismo, o politicamente correto (algumas vezes com razão), “elites” acadêmicas e “liberais” em geral. O ódio é racial e antidemocrático. Ele adapta a história a seus objetivos, substitui bolsa de estudos e ciência por “patriotismo”. Transformou “verdade” em arma política. Trouxe o país de volta a 1860, naquela eleição em que os americanos votaram fundamentalmente em duas diferentes visões de futuro – a favor ou contra a escravidão. Hoje, esses interesses minoritários lutam por sua existência dentro da federação tentando apropriar-se dela.
Não podemos imaginar agora o mesmo resultado violento de 1860, mesmo se decidirmos salvar nossa democracia das amarras do poder de uma minoria. Mas a preservação de nossa União não virá apenas denunciando a hipocrisia moral, ou apontando para o cinismo ou chamando a atenção para a realidade dos números.
A democracia precisa ser sustentada pela mesma vontade política que pode destruí-la.
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