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Governo e política, crime e segurança, arte, escola, dinheiro e principalmente gente da cidade sem portas

Vestido Branco

 

 

DEU MARX NO SAMBA

Se Deus está morto, o PIB tomará o lugar Dele e os 
economistas serão os sumos sacerdotes do novo mundo.

Polly Toynbee

 

 

Este livro foi escrito a muitas mãos e incontáveis ouvidos para homenagear a arte dos músicos que nasceram ou escolheram Curitiba para palco de seu talento durante a década de 1960. E para festejar a cidade ainda pequena dos pianos na sala de estar, da hausmusik, dos pagodes no quintal, dos seresteiros que emergiam da cerração, umidade nenhuma capaz de desafinar seus violões – cidade diferente, capaz de acolher todas as gentes e encantar-se com todas as harmonias.
Afinados, desafinados ou lamentavelmente afônicos éramos todos, com destaque 
para os mais especializados, como Aramis Millarch e Renatão Ribas, testemunhas desse 
tempo feliz. Mais ou menos da mesma idade, filhos de famílias da classe média, seja lá o 
que isso signifique, a maioria era capaz de exibir, quando necessário, diplomas de direito, 
sociologia ou jornalismo. Em comum, a condição de associados ao Sindicato dos Jornalistas 
Profissionais do Paraná e o temor das matemáticas. Daí o gosto pela conversa recheada de 
humanismo das noites do Bar Palácio onde o filé com farofa de ovo era servido pelo Mozart, 
um garção-filósofo – e frequentemente vinha acompanhado de surpresas.
Inesquecível a noite em que a surpresa foi o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, saído de uma palestra sobre a teoria da dependência na Federal. Em torno dele, professores e políticos do MDB, o partido da redemocratização inflado pelo recorde de votos na eleição de 1974. Ao lado dele, um sindicalista chamado Luis Inácio da Silva, o Lula, exibia ameaçadora barba preta.
Fernando Henrique revelou que Lula era a última palavra em matéria de 
revolucionário. Um líder natural, nascido longe da incubadeira do Partidão, amadurecidonas greves do ABC paulista que agora consolidava sua visão do mundo com a elite de professores 
da USP. Pelas mãos dos mestres, explicou FHC, ele estava mais do que lendo – estava 
interpretando para os companheiros o pensamento clássico da esquerda, a começar pelo 
de Karl Marx.

– Querem ver? – perguntou Fernando Henrique com um ar entre cínico e maroto -Lula, dá pra explicar a eles por que o modelo político brasileiro fracassou? 
 E Lula explicou:

– Porque político brasileiro faz de conta que não sabe que a infra-estrutura econômica condiciona a superestrutura política e social.
Entende, leitor, por que o Bar Palácio foi essencial? Ele nos permitiu ver antes dos outros que FHC era o guru de Lula. E deu-nos a felicidade de desconfiar a tempo que Lula, talento flexível, poderia mais tarde apreender a recitar, em vez de fundamentos marxistas, o discurso do neoliberalismo.
Centro de fofocas, o Bar Palácio era também ponto obrigatório dos músicos e 
compositores que vinham a Curitiba, de Tom Jobim a Cartola, de Paulo Soledade, o grande 
autor de Estão Voltando as Flores, a Billy Blanco. Eles testemunhavam como ia bem a 
música brasileira numa época em que havia gente se deslumbrando com o ie-ie-ie. 
O Brasil estava exportando a bossa nova. O concerto do Carnegie Hall fora um sucesso.

A bossa não era um sambinha de uma nota só, mas um movimento amplo, muito rico, que 
tinha um pé no bebop outro no samba de raiz. Duvida? Pergunte para o Gebran Sabbag, 
para o Waltel Branco ou para o Fernando Montanari, que eram daqui mas tinham um 
suingue de lá. Aí todo mundo corria ao La Vie en Rose, a bênção Gebran! Ou à Marrocos, 
sua benção Fernandão! Ou ligavam para o Rio, porque o Waltel já estava na Globo.
Este livro retrata de forma um tanto anárquica, em clima de Bar Palácio, o tempo 
de luz e glória em que Curitiba foi uma das capitais da música popular brasileira. Começa, 
na verdade, pouco antes de 1960, quando Lápis compôs Vestido Branco e Raul de Souza 
chegou para integrar a Banda da Base; vai pouco além de 1970, quando, esgotada a chama, A Chave parou de cantar. É resultado de animada pesquisa, que incluiu reuniões madrugada a dentro, com o consumo de muito cigarro e cerveja. E cujo produto foram horas e horas de fita nem sempre bem gravada, que exigiram outras horas e dias de apuração pelo telefone ou em novas entrevistas, agora com microfone de lapela e perguntas menos erráticas. Demorou para sair a pergunta certa:

– Por que Curitiba era em 1960 um grande centro musical? A resposta podia estar naquela explicação de Lula.
– Porque a infra-estrutura econômica condiciona a superestrutura política, social e cultural.
Ou, traduzindo: porque deu Marx no samba.
Pois não há arte sem mecenas. Nem existe mecenato onde o dinheiro é curto. No Paraná dos anos 60 sobrava dinheiro porque o Brasil era o maior produtor de café do mundo. A cafeicultura, que havia chegado no início do século, entrou em grande expansão a partir de 1950 devido aos altos preços do mercado internacional. De 300 mil hectares, em 1951, o Estado passou a 1,6 milhão de hectares em 1962, ano em que atingiu o apogeu: colhemos 21,3 milhões de sacas de 60 quilos, equivalentes a 54% da produção brasileira e 28% da produção mundial.
De cada dois dólares que o país faturava com exportações, um vinha para o bolso 
de alguém que plantava café em Londrina, Maringá ou Cornélio Procópio. Sobre esse 
dinheiro, o governo do Estado cobrava o Imposto de Vendas e Consignações e mandava o 
numerário para os cofres do Banco do Estado. Cada prefeito municipal tinha direito a um 
pedaço do IVC, mas a distribuição não era automática nem necessariamente equânime. 
Era preciso que ele viesse a Curitiba, presidente da Câmara Municipal a tiracolo, reiterar 
ao governador a velha fidelidade – ou pelo menos demonstrasse que seu oposicionismo 
estava longe de ser raivoso.
Ao lado dos prefeitos e vereadores, chegavam a todo instante empresários interessados em empréstimos de Banestado ou do Banco de Desenvolvimento do ParanáBADEP. Ou em renegociar dívidas com o fisco e com os bancos.

Em alguns casos, intermediar esses negócios era mais lucrativo do que produzir 
café. Um famoso corretor de influências instalou-se no Edifício Asa, situado na praça Osório, 
ao lado dos grandes hotéis. Procuração em punho, recebia as cotas do Artigo 20 – assim 
se chamava a participação no IVC -, cobrava dívidas de empreiteiros, levantava empréstimo 
com escassa garantia. Chegou a ficar com 40% do valor negociado – um escândalo de 
comissão que praticamente decidiu o pleito de 1960, vencido pelo moralismo irado de 
Jânio Quadros e pelos que tiveram sensibilidade política para entender o momento. Ney 
Braga foi lançado por um pequeno partido, o PDC, que tinha poucos diretórios municipais, 
a maioria em cidades grandes como Londrina, Cascavel e Maringá. Apesar disso, obteve 
votos em todo o Estado. Fora eleito, brincava-se, pelo PFI, Partido da Farmácia e da 
Indignação. Na falta de diretório onde se reunir, os eleitores faziam do farmacêutico o 
organizador de sua indignação.

Todos esses personagens hospedavam-se em bons hotéis, passavam no Bar Palácio, 
iam ao teatro Guaíra e às casas noturnas ver os balés e as gringas eletrizantes. E tanto no 
hotel como no restaurante, no teatro e nas casas noturnas o que se ouvia era música ao 
vivo, quase sempre de boa qualidade. A demanda jogava para cima o cachê dos músicos e 
atraía mais talentos.
Havia muito dinheiro e pouco juízo nesse tempo de ouro verde. Já na metade da 
década de 1940 os curitibanos começaram a sentir-se ricos e decidiram que precisavam 
de um grande salão de festas para celebrar as boas colheitas no Norte do Estado. A diretoria 
do Clube Curitibano aprovou o magnífico projeto da nova sede na esquina da Rua XV de 
Novembro com Barão do Rio Branco. A tradicional construtora Gutierrez, Paula e Munhoz 
orçou a obra em mais de cinco milhões de cruzeiros, valor que, ao final, ultrapassou os 
nove milhões – e o dinheiro apareceu num instante, graças à boa vontade dos dirigentes da 
Caixa Econômica Federal. Joffre Cabral e Silva foi o responsável pelo sucesso das tratativas 
entre o clube e a CEF.

Joffre sabia como caminhar no interior do labirindo burocrático. Mas não desconfiou que a cidade ia crescer depressa, nem que o número de automóveis em circulação logo transformaria seu clube em inútil monumento arquitetônico. Por isso ignorou o terreno ao lado (ver croquis), que ficou desocupado durante mais de uma década e cujo proprietário, reza a lenda, cansou de oferecê-lo a preço módico. Se o Clube Curitibano tivesse usado o crédito amigo da CEF para adquirir também a área anexa seria possível, anos depois, erguer um estacionamento vertical para atender aos associados.
Sem garagem, o jeito foi mudar para a sede campestre da Getúlio Vargas, uma região onde – pensavam os otimistas – jamais faltaria vaga. Faltou. O estacionamento que não foi feito na Barão acabou construído na Getúlio Vargas a um custo bem maior. O prejuízo não foi apenas financeiro. Continuando no modo condicional, não custa imaginar que se existisse uma garagem na sede, o clube estaria lá até hoje – é insano abandonar um prédio com menos de trinta anos de construção – e sua presença poderia desacelerar ou até impedir a degradação do centro da cidade.
Era muito animado o Curitibano, tanto acima do nível da rua como no subsolo, onde funcionava a Caverna Curitibana (veja a planta baixa), palco de muitos shows dos personagens que vão desfilar nas páginas seguintes. O palco, onde tocava Beppi e seus Solistas e outras grandes orquestras, estava instalado em um salão de seiscentos metros quadrados. A área da cozinha tinha mais duzentos metros quadrados. Até a chapelaria era imensa, apesar da decadência desse adereço. Os donos da afamada Chapelaria Cury e seus poucos concorrentes já tinham descoberto que fazer boinas e chapéu de vaqueiro era mais negócio do que insistir no gelot e no panamá.
A época de ouro da música popular brasileira em Curitiba vai até uma madrugada 
de 1975 em que a terra roxa do Norte do Paraná começou a esfriar e esfriou até congelar. 
Era a geada negra, que destruiu boa parte da lavoura cafeeira e acabou a era da monocultura 
cafeeira. O café erradicado, com ele sumiram os reis da noite que bancavam a grande 
festa da década de 1960. Nunca mais piano, baixo e bateria no escurinho do Luigi’s.

Nunca mais striptease das gringas lascivas na Marrocos. Do riso de cristal das meninas do LaVie en Rose é bom esquecer.

Na madrugada do Bar Palácio houve muito eu-não-disse, a discussão entrou pela madrugada e até que alguém subiu na mesa e profetizou grandes mudanças no Estado, por motivo tão simples quanto lógico: o fato econômico é base e causa determinante dos fenômenos históricos e sociais, aí incluídas as instituições jurídicas e políticas, a moralidade, a religião e o que mais?

Ah, as artes.