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Um mundo enfim ordenado. Per cola et commata

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Não sei se são muitos, ou se reunidos cabem numa kombi, mas há os que desprezam a nova linguagem que aparece em mensagens de celular – os rs, emoticons, ctz (certeza), fikdik (fica a dica).

Por isso voltaram a estudar gramática.

Têm que estudar mesmo porque mudou quase tudo. Não se usa mais a Gramática Expositiva, de Eduardo Carlos Pereira, que teve 158 edições. No prólogo, o mestre ensinava: “Vehiculo da Idéa, é a palavra o mais bello e util apanagio da humanidade. Filha do homem, traz com o homem frisante analogia. Sua origem, como a do seu putativo genitor, tem o cunho do mysterio, perde-se na noite remota dos tempos, e offerece ás pesquisas dos sábios indecifrável enigma. Como elle ainda, ella nasce, cresce, adoece e morre”.

Para desvendar esse “mysterio” é preciso voltar ao ano 400, quando São Jerônimo concluiu a tradução da Bíblia e deu aos monges copistas instruções sobre como dividir o texto “per cola et commata”. Ele queria a Palavra bem articulada e a pontuação servia para acabar com ambiguidades, regular o ritmo da leitura. Uma pausa breve, commata; longa, fim de sentença, cola.

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E se a pausa fosse maior do que a vírgula e menor que o ponto? Ai não havia o que fazer. A solução só chegou mil anos depois, em 1494, quando um editor de Veneza inventou o ponto e vírgula.

Era o fim da Idade Média, o início da Renascença, com suas luzes. A sabedoria do mundo ainda estava escondida em velhos manuscritos, preservados em bibliotecas de mosteiros. Aqueles textos precisavam ser divulgados com clareza e para isso apareceram outros sinais de pontuação que não sobreviveram.

Não vou falar do trema, antigo terror dos estudantes, hoje reduzido à sua insignificância: só serve para registrar a pronúncia de certos nomes estrangeiros. Agora a gente aguenta as consequências sem gastar dois tremas e o texto continua claro.

Exceção, nomes próprios: a portentosa Gisele continua carregando um trema no Bündchen.

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Com o ponto e vírgula a conversa é outra. Ele é significantíssimo. Os modernos gramáticos tratam-no com carinho. Valorizam a meia pausa que Antonio Vieira usava tão bem. No Sermão da Sexagésima, por exemplo, ele define o pregador, que é vida e exemplo:

“Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: Saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença: uma coisa é o soldado, e outra o que peleja; uma coisa é o governador, e outra o que governa.”

Aqui o leitor pode constatar mais uma vez a atualidade de Vieira. Vivemos entre governadores que nem sempre governam, e todo mundo sabe que raramente o presidente preside.

O trecho vale por dez aulas de pontuação. E de política.

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Claro que o ponto e vírgula não é uma unanimidade. Kurt Vonnegut Jr o odeia. “Não use pontos e vírgulas. Eles são hermafroditas travestidos, representam absolutamente nada. Só servem para mostrar que você frequentou algum curso superior.”

Machado de Assis, ao contrário de Vonnegut, era amigo do ponto e vírgula. Em uma de suas crônicas da série “Bons dias!” ele explica bem humorado que não valia a pena traduzir o texto: “Estes meus escritos não admitem traduções, menos ainda serviços particulares; são palestras com os leitores e especialmente com os leitores que não têm o que fazer.”

(Um ponto depois de “serviços particulares” seria muito; uma vírgula, pouco.)

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O século 19 foi o século do soneto e do ponto e vírgula. Linguistas fizeram as contas e constatam que era mais usado que a vírgula. Quanto ao soneto, convém registrar que continua sendo cometido por poetas muito competentes, como a mineira Liria Porto

Cometi um soneto

pedi socorro a hipotenusas e catetos
falei comigo e também com os meus botões
amasso versos sou assim aos borbotões
porém insisto em processar alguns sonetos

conversa vai conversa vem eu vou tentar
busco o luar a luz do sol amarro-os bem
ou largo tudo num papel em qualquer trem
trago co’as mãos as ilusões lá de além-mar

batuco os dedos a contar sílabas tortas
e veja só velho camões se não te importas
sempre fui doida e fico mais tenho certeza

falo sozinha a cavoucar rimas avessas
sou assassina criminosa ré confessa
deste soneto atordoada eu me fiz presa

 

A poeta entrou neste texto para, primeiro, animar o leitor com a graça de sua invenção; segundo, mostrar que é possível escrever bonito sem ponto, sem vírgula, sem ponto e vírgula.

Certo estava George Campbell, filósofo do Iluminismo Escocês, que decretou: “A língua é um conjunto de modismos. Não cabe à gramática regular os modos do discurso.”

CTZ

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P.S. – Quem tiver curiosidade, deve dar uma olhada em “Gramática reflexiva da língua portuguesa”, de Marcelo Moraes Caetano (Editora Ferreira).  

P.S. 2 – Ver também

Semicolon: The Past, Present, and Future of a Misunderstood Mark     Kindle Edition

by Cecelia Watson

E também http://www.englishproject.org/april-and-comma

 

 

Posted on 1st setembro 2019 in Sem categoria  •  No comments yet

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