logo
Governo e política, crime e segurança, arte, escola, dinheiro e principalmente gente da cidade sem portas
post

Um novo Roosevelt?

.

 

Um New Deal da pós-pandemia.

 

.

 

Mark Twain dizia que não se deve prestar muita atenção a discurso de político – a gente corre o risco de acreditar nele. Pois eu prestei atenção ao discurso de posse de Joe Biden. Ele disse que ia trazer a cadeia de suprimentos (supply chain) de volta para os Estados Unidos e essa foi uma declaração revolucionária porque propõe um cavalo-de-pau no neoliberalismo, na globalização e na terceirização que dominou o pensamento americano de Ronald Reagan para cá.

Acredito que Biden disse a verdade.

Para botar sua verdade no mundo – que também é o nosso mundo, na medida em que o Brasil continua dependente dos EUA até para decidir quem pode visitar a Base de Alcantara – o presidente encomendou à assessoria econômica um estudo da realidade americana. Quem tiver paciência, pode lê-lo em whitehouse.gov sob o título Building Resilient Supply Chains, Revitalizing American Manufacturing, e Fostering Broad-Based Growth: 100 Day Reviews Under Executiva Order 14017. Trata-se de um relatório de 250 páginas que já está na mesa dos candidatos e, a não ser que virem a mesa, vai estar no discurso de posse do novo presidente do Brasil.

O documento dispensa retórica porque tem a força dos números. Começa homenageando o mais intervencionista de todos os presidentes americanos. Para ganhar a guerra, o governo Roosevelt requisitou todos os insumos estratégicos, ditou salários e preços, investiu em fábricas de tanques, canhões, uniformes, medicamentos e alimentos para os soldados. A produção de automóveis entre 1942 e 1945 foi zero porque as montadoras fabricavam jeeps e tanques; o governo tornou-se o comprador de dois terços da produção de toda produção das indústrias.

A economia bombou, com volta ao pleno emprego e aumento de 48% no Produto Nacional Bruto. Como não havia besteiras tipo teto de gastos, o déficit orçamentário superou 25%. Não custa repetir: os assessores de Biden descobriram que até o início da guerra o desemprego era maior que dois dígitos; após a chegada de encomendas governamentais de mais de 100 bilhões de dólares – mais do que o produto de toda a economia uma década antes – o desemprego caiu para 3 e a produtividade dobrou. Em 1944 as fábricas produziram 96 mil aviões e os estaleiros de Henry Kaiser, que levavam 365 dias para colocar no mar um navio da classe Liberty, baixaram para 39 dias em 1943 e apenas 14 dias no ano seguinte.

Uma virada na economia que não ficou nisso. O esforço industrial melhorou a vida da população civil e trouxe avanços tecnológicos, como a Internet, que mudaram os EUA e o mundo nos pós-guerra. Um documento clássico da época foi “Ciência, a Fronteira Sem Fim”, de Vannevar Bush, conselheiro científico de Roosevelt, que ensinava: a pesquisa tecnológica é o motor do desenvolvimento.

O documento de Biden cita o passado para indicar um caminho para as atuais dificuldades, que não são poucas; começam com o desafio da China, que atualmente refina 60% de todo o lítio e 80% do cobalto mundial. E prosseguem no front interno, onde alguns cabeças de ovo insistem na crença neoliberal do laisser faire, a ideia de que se o vizinho faz melhor e mais barato deve-se comprar. O livre mercado, o estado mínimo e outros dogmas da ortodoxia conservadora acabaram com a grande indústria manufatureira – aquela que cria empregos, gera encomendas às indústrias e dificilmente sonega impostos porque reinveste o lucro. O Big State ganhou a Guerra Fria.

Para competir nessa nova guerra contra o império chinês Joe Biden apresentou uma proposta de orçamento de quase quatro trilhões de dólares, depois reduzida pelo Congresso. O objetivo desse dinheirão é conseguir soberania industrial em áreas estratégicas. A produção não pode parar, por exemplo, porque os semicondutores que movem tudo que é moderno são feitos na China, Coreia do Sul, Taiwan e até na Tailândia; a poluição não pode aumentar porque a produção de baterias elétricas de alto desempenho está na Asia; as pessoas não podem ser contaminadas pelo Covid 19 porque faltam máscaras – também produzidas do outro lado do mundo porque lá é mais barato.

Não foi necessário muito esforço para descobrir o caminho. Desde 1989, o MIT, Instituto de Tecnologia de Massachusetts, publica uma série de relatórios intitulados Made in América: Recuperando a Liderança Produtiva, onde sugere estratégias para retomar o espaço entregue aos produtores asiáticos. Em 2005 o jornalista Barry Lynn escreveu End of Line, mostrando os custos ocultos de globalização.  Os que criticaram hoje admitem que aquele era mais que um livro de não-ficção – era uma profecia.

O relatório do Casa Branca significa uma dramática reviravolta nos dogmas econômicos dos últimos 50 anos. Ele diz que não é sonho uma estratégia neo-Rooseveltiana de prosperidade compartilhada, empregos para quase todos e um peru na mesa no Dia de Ação de Graças.

Se vai dar certo ninguém sabe. Os Estados Unidos são aquele lutador de 40 anos que volta ao ringue para tentar reconquistar o cinturão de ouro contra um adversário fortíssimo e muito mais novo.

Tirando os últimos neoliberais (que, em grande número, vivem no Brasil e falam em perigo comunista), todas as pessoas lúcidas concordam que está na hora de o mundo inteiro fazer uma curva em U e pensar na importância do investimento público e do planejamento para desenvolver o país e compartilhar a prosperidade com todos.

*

P.S. – A resenha de Robert Kuttner está na página 8 do exemplar de 18 de novembro da New York Review of Books. Encontrável na Livraria da Vila. Os livros de Kuttner são editados no Brasil pela Companhia das Letras.

 

Posted on 30th janeiro 2022 in Sem categoria  •  No comments yet

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *