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Compromisso de ano novo

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A gente acorda cedo no primeiro do ano. E corre para a cidade para ver as ruas desertas, pardais ciscando no asfalto sem medo de carros. Aproveita a oportunidade para inspecionar as entranhas do horroroso pinheirinho de arame e fio elétrico, disneylike, que a prefeitura teima em iluminar todo ano sob pretexto de homenagear a Terra dos Pinheirais.

Anos atrás uma palmeira de plástico foi enxotada da Pracinha do Batel pelos moradores do bairro. Urge expulsar esse falso pinheiro ianque.

A gente quer fotografar uma vez mais o gari, solitário trabalhador do ano novo.

Lá está ele no meio da praça Dezenove de Dezembro  disposto a provar aos turistas que: a) aqui se trabalha, mesmo sem pagamento de adicional de ano novo e apesar da reforma trabalhista; b) que Curitiba é limpa, ao menos no sentido literal.

Mas não há turistas. Apenas um casalzinho de namorados, um grudado no outro, que ainda dorme em um banco – e nesse aspecto Curitiba é mais generosa que, por exemplo, Nova York, onde bancos de madeira têm braços de ferro a cada 50 centímetros.

Cenas assim foram cantadas por João de Barro e Alberto Ribeiro em Fim de Semana em Paquetá.

E quando rompe a madrugada
Da mais feiticeira das manhãs
Agarradinhos, descuidados,
Ainda dormem namorados
Sob um céu de flamboyants

Flamboyant não é árvore curitibana, não aguenta o frio, mas o pesquisador Francisco Cardoso descobriu dois exemplares que sobreviveram ao clima. Estão na rua Sete de Abril, entre Conselheiro Carrão e Simão Bolivar, no Alto da Glória.

Os namorados da Praça Dezenove seriam o grande assunto do primeiro do ano não fossem os sem-teto do Centro Cívico. Eles moram bem em frente da Prefeitura. Tiveram a boa ideia de inventar uma lavanderia a céu aberto e quaradouro no jardim que hoje pertence ao Tribunal de Justiça. Lá colocaram as roupas para secar e quarar – demonstração de como o espaço público pode ser usado para elevar a qualidade de vida do povo e incluir os excluídos.

Não vá o guarda municipal expulsar os sem-teto de lá. A marquise não é dele, é da antiga LBA – Legião Brasileira de Assistência. De Assistência, entendeu?  Numa sociedade saudável, os líderes estariam sugerindo lugares para mais quaradouros, para outras marquises e para mais bancos de praça sem braços de ferro.

Agora uma observação importante, do Chistopher Hitchens. Dante reservou um dos cantos mais quentes de seu Inferno para aqueles que, em tempos de crise moral, teimam em permanecer neutros. Não se pode ser neutro diante dos namorados da Praça Dezenove e dos sem-teto do Centro Cívico.

Eles nos tocam. Instigam a agir.

No século 20, a palavra genocídio foi inventada para descrever o extermínio dos armênios cristãos pelos turcos otomanos e a tentativa de alemães nazistas de eliminar os judeus do mundo. No século 21, os genocídios se multiplicaram pelo mundo e chegaram a nós – o governo negligenciou o fornecimento de oxigênio para milhares de moradores de Manaus, que morreram de falta de ar. Brasileiros, geralmente negros e pobres, são executados em confrontos com a polícia, na luta pela terra, no hospital público sem higiene, sem medicamentos, sem médicos.

Meu compromisso de ano novo é pela igualdade e contra os fanatismos, principalmente o fanatismo da pátria amada, do líder justiceiro, da ideologia da ordem, da fé no “futuro grandioso”. Na essência, é um compromisso com o ceticismo, com a impaciência, com o ódio à injustiça.

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Exemplo.

 

Posted on 2nd janeiro 2022 in Sem categoria  •  No comments yet

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