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NICODEMO

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hhkhkh O símbolo da Medicina: uma cobra enrolada no bastão de Esculápio.

 

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I

 

Conheci o Nicodemo nos Jogos Universitários, promovidos pela UFPR antes da reforma de 1968, quando o ensino superior passou a ser ministrado também por empresas educacionais. Na praça Santos Andrade funcionavam os cursos de Engenharia, Direito e Medicina. Um guri do Santa me levou até o morgue da Medicina, no subsolo. E apresentou o Nicodemo, com sua bem aparada barba branca, deitado na mesa de granito.

-Por que ele é tão amarelo?

O colega tinha um irmão quase médico e sabia.

-Formol.

Havia um buraco na barriga.

-E aquele buraco?

-Tiraram o fígado para a aula de anatomia patológica.

O resto do Nicodemo estava lá. Era o mascote dos alunos por causa da aparência nobre e das histórias boêmias, que ninguém testemunhara mas a grave cirrose hepática atestava. Beberrão de vida alegre, foi transformado em patrono do time de futebol.

No estádio do Ferroviário, na Vila Capanema, jogava a Medicina com uniforme verde e branco, contra o time de Direito, de camisa vermelha. Verde e branco como o Coxa. Eu torcia e cantava o hino da Medicina.

O Nicodemo

Pla pla pla (palmas)

Da Faculdade

Pla pla plá

Tava banhado em criolina

Ina ina ina ina (bis)

Hoje acordou

Pla pla pla pla

Então gritou

Pla pla pla pla

Quem vai ganhar

É a Medicina

Ina ina ina ina (bis)

Torcida bonita, formada pelos admiradores como eu, mas principalmente por irmãos, parentes e namoradas. Muitas namoradas. As moças sonhavam casar com o grande cirurgião, o cardiologista renomado.

A turma da medicina era temida – e não só pelo futebol rude. Gente perigosa. Certo dia uma mocinha desandou a gritar no lotação da Vicente Machado. Ao abrir a bolsa para pagar encontrou, em vez do dinheiro, um dedo do Nicodemo.

O autor da brincadeira (brincadeira, chama isso de brincadeira?) era do terceiro ano, ex-namorado que saiu magoado da relação. Investigaram, fecharam o cerco, foram em cima, ele negou. A moça queimou a camisa da Medicina. Acabou noiva de um estudante de Engenharia, que não jogava futebol e tinha medo de defunto.

 

II

 

Nicodemo não estava só. Cadáver era indispensável nas aulas do professor Napoleão Teixeira, catedrático de Medicina Legal na Faculdade de Direito, que funcionava ao lado e usava as mesmas instalações. As aulas saiam da vida real. Histórias de arrepiar. Como a do desembargador do Maranhão, que, preso de ciúme mórbido por mulata ardente e bela, mata-a barbaramente, oculta-lhe o cadáver e, mais tarde, em prantos, confessa:

– Amei-a, matei-a; tornasse a viver, tornaria a amá-la, voltaria a matá-la! Não era invenção. Os tribunais do juri viviam cheios de casos assim. E lá estava, nas maõs do professor, o fac-símile do jornal O Imparcial, com a reportagem sobre o crime.

Todos os alunos, mesmo os calouros, eram doutores. “Vejam, doutores, a importância de o advogado ser capaz de distinguir um criminoso de um cidadão com surto psicopático”. E lembrava que a ciência oferecia argumentos para condenar o assassino. Ou para livrá-lo da cadeia com um diagnóstico de psicose. O Direito tem dois lados.

Aulas com casos pitorescos e crimes horrendos. Os sexuais eram relatados com minúcias. Algumas alunas ficavam desconfortáveis com a quantidade de detalhes oferecida pelo professor.

Abundat iniquitas non nocere – justificava. -O que abunda não prejudica.

Ninguém era obrigado a assistir às aulas. As dispensadas recebiam a garantia de que não perderiam a frequência. Mas também não aprenderiam, não é?  Talvez por isso, a criminalística foi durante bastante tempo território masculino. O último verso do hino do Nicodemo, que só deixou de ser cantado nos anos 1970, defendia o privilégio:

-A Medicina é papa fina, não é coisa pra menina!

Algumas aulas eram in situ, no Instituto Médico Legal. Lá estava o corpo do jovem que brigou no bar do Novo Mundo. O homicídio saiu no jornal de ontem e era a aula de hoje.

-Observem, doutores, o projetil fez um percurso de cima para baixo que pode inocentar o réu. Ele é alto, mas o suposto matador tem só 1 metro e 62. Não estranhem se a defesa levar a melhor no juri.

Anatomia Descritiva era matéria do primeiro ano. Alguns calouros passavam mal ao ver um assistente serrar a caixa craniana da vítima enquanto outro continuava comendo com apetite um sanduiche de mortadela.

Dizem que essa cena era ensaiada. O professor acreditava que não há advogado forte com estômago fraco.

 

III

 

Não sei o que diria o velho mestre ao ouvir a seguinte informação: as aulas com cadáveres estão ameaçadas.

A ciência produziu um substituto do Nicodemo, que ainda não tem nome. É chamado apenas de Visible Body (Corpo Visivel) pelo pessoal da Argosy Publishing, responsável pela produção e distribuição do Atlas do Corpo Humano em 3D.
Outros softwares simulam o corpo humano e suas patologias. Com impressoras 3D é possível imprimir um corpo com seus ossos, nervos e músculos. Custam relativamente pouco e não geram problemas éticos, nem de segurança. Dá para dizer que acabou a fase “romântica” da Medicina? Tenho um amigo médico legista que se arrepia ao ouvir essas coisas.  Picaretagem. Igual a essa tal Medicina de baixo custo, que entrega diplomas de baixa qualidade e estudantes de baixa responsabilidade.

-O que você espera de um cara que ganhou diploma em Cucui de las Palomas, onde não há residência médica e o doutor mais procurado se atualiza pela Veja Saúde?

Na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nacional de Córdoba fizeram a pesquisa “Cadáveres ou Computadores?”.  Nicodemo ganhou fácil.

Doutores e doutoras preferem o ensino tradicional. Só abrindo um pulmão você vê o efeito do cigarro, do amianto, da fumaça de óleo diesel. Ao olhar. alisar e apertar o fígado você entende a cirrose hepática.

Do outro lado da rua, no curso de Medicina Legal da Faculdade de Direito, há o mesmo consenso. Ninguém resolve um crime, ninguém salva um inocente da prisão perpétua com cadáver em 3D.

 

IV

 

Ia colocar um ponto final, mas lembrei do que disse meu amigo legista ao ser informado que o cadáver de computador “era absolutamente perfeito”:

-Ser perfeito não interessa; tem que ser interessante.

 

*

 

P.S. – O hino do Nicodemo é antigo e foi cantado pelos bixos (é com x mesmo) em todas as Faculdades de Medicina do país.

 Qüim qüim qüim quiririm qüim qüérum (4 x);   Oh Nicodemo [idem],  Oh Jalaô [idem],

            Oh Nicodemo  Jalaô  oba, oba  oba  oba  oba,  oba  oba   oba  oba; e o esqueleto  [idem]

            da Faculdade [idem], ‘tava guardado em  creolina, creolina, creolina, creolina, creolina;

            mas acordou [idem], e gargalhou [qua qua qua qua], e a  maior é a Medicina,  Medicina

            papa-fina, não é coisa prá menina, e a maior é a Medicina!

            

 

 

Posted on 7th abril 2021 in Sem categoria  •  No comments yet

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