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Nem todo filme político é bom, mas todo bom cinema é político. João Saldanha ensinava: “Política a gente faz desde que acorda e decide se escova os dentes de cima para baixo ou da esquerda para a direita!.
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Sexta-feira, ao final da sessão das 21h30 de “Aquarius”, no Crystal, o público rompeu em aplausos e gritos de “Clara! Clara!”.
Fiquei na dúvida: homenageavam a atriz Sonia Braga devido à cuidadosa, profunda, trabalhada criação da personagem Clara, que enfrenta a especulação imobiliária, ou aplaudiam a ativista que, ao lado do diretor Kleber Mendonça e do elenco, denunciou o “golpe constitucional” no Brasil durante o Festival de Cannes?
Empiricamente, sem ao menos uma pesquisa na mão, garanto que as duas alternativas são verdadeiras. Sonia Braga encara a resistência política que o momento requer e oferece a todos nós uma atuação inspiradora.
“Aquarius” foi escrito para ela como Cidadão Kane foi construído por e para Orson Walles.
E o governo Temer confirmou que é mesmo integrado por misóginos, racistas e golpistas, como os atores denunciaram, ao sabotar a distribuição do filme com a classificação até 18 anos – pura retaliação política.
Ou, corrigindo: confirmou que é tudo isso e também padece de insegurança crônica porque ontem, dia 1º, ante os protestos, o Ministério da Justiça recuou da decisão e reduziu a classificação para 16 anos.
O filme de Kleber Mendonça tem tudo para ser um clássico do cinema. Descende da tragédia grega (da qual emprestou um deus ex machina que dá solução à trama), e dos grandes faroestes. Tem vilões e heroína bem marcados, quase teatralmente, o que não é defeito. Defeito é acreditar que todo mundo tem que ser James Dean e que interpretação só presta se for contida.
A história se passa em Recife, cuja área, segundo Fabio Victor, da Folha de S. Paulo, é metade roubada ao mar, metade à especulação.
Mas poderia ter como cenário Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro ou qualquer grande cidade brasileira. Ou Nova York, onde developers como Donald Trump destruíram boa parte da ilha de Manhattan e avançam agora contra preciosidades como a Chinatown. O mandarim das elites substituiu o cantonês nas duas últimas décadas e o preço do metro quadrado não para de subir.
O mesmo acontece no East End londrino e em outras capitais. O filme de Kleber Mendonça tem o apelo planetário que justifica sua indicação ao Oscar. Está acima das preferências políticas.
Já escrevi demais. Agora corram ao cinema, aplaudam em pé e gritem Clara! Clara!
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(sábado, 3 de setembro de 2016 – 00:54)