.
.
.
Numa tarde de 1956 entrei na redação do Diario do Paraná, na rua José Loureiro, e pedi emprego.
No aquário da redação estava Airton Luiz Baptista, o secretário do jornal. Todo bom jornalista adquire após anos de trabalho dois tipos de olhar, o curioso e o cético. Foi o olhar número dois que Airton usou quando expliquei que desejava um lugar de cronista social e que seria um trabalho como o do Jacinto de Thormes. Então você quer ser como o Jacinto de Thormes? Tudo bem. Agora não tenho a vaga. Chamo você oportunamente. “Oportunamente”. Tai o que você conseguiu, otário, pedindo a coluna social. Um “oportunamente”, que é o jeito jornalístico de dizer não.
Aqui uma pausa para explicar quem era Jacinto de Thormes, o Maneco Muller. Muitos esqueceram o colunista mais famoso dos anos 1950, com passagem pelo Correio da Manhã, Diário Carioca e mais tarde Ultima Hora. O pseudônimo foi emprestado de um personagem de Eça de Queiros, em A Cidade e as Serras, sugestão do diretor do Diário Carioca, Prudente de Morais Neto. Carioca, filho de diplomatas, Maneco Muller virou o colunismo de cabeça para baixo. Não mais listas de convidados aos casamentos, a descrição dos vestidos em linguagem pomposa. Ele criou o estilo leve, bem humorado, de noticiar festas da alta sociedade e também grandes negócios, esporte (era Botafogo), política, cinema, vida cultural, tudo. Falava quatro línguas; seu modo à vontade de agir denunciava logo que ele pertencia ao patriciado.
Meses depois cheguei ao Diário do Paraná, mas não como colunista. Era o faz tudo do concurso de Miss Paraná de 1957 em que Karin Japp foi eleita, disputou o título de Miss Brasil com a amazonense Terezinha Morango e perdeu. Consegui para Karin um padrinho poderoso, o general Maneco Aranha, irmão de Osvaldo, homem forte de Getúlio, e de Ciro, presidente do Vasco da Gama. Maneco patrocinou um jantar no Hotel Serrador para alavancar nossa candidata, que terminou em honroso quinto lugar.
No dia seguinte, já em São Paulo, levei Karin ao estúdio da TV Tupi, no Alto do Sumaré. Foi entrevistada por Marcio Pauletti e, como toda miss, não estava preparada para dizer muita coisa. Marcio me chamou para participar. Constrangido, fiz um discurso sobre a beleza da mulher paranaense que foi registrado pelo advogado José Arnaldo Rossi. “Vi você na Tupi”, me contou depois. Uma façanha, porque a TV de 1957 tinha um décimo da audiência do rádio.
.
* * *
.
A redação do Diario era povoada de sábios. Valmor Coelho, editorialista, era um dos principais especialistas em direito civil de Curitiba. Ao lado dele, o poeta Walmor Marcelino, recém-chegado de Porto Alegre. Mais adiante Benjamin Steiner, argentino, o artista gráfico que mudou a cara dos jornais do Paraná e compôs “Sofia” samba para o carnaval de 1960. (*)
Lá estava também Leo de Almeida Neves, amigo de Souza Naves, que em 1966 seria o deputado federal do MDB mais votado no Paraná. E Julio Ortiz, advogado paraguaio, que logo entrou para a diplomacia, foi consul em Curitiba e depois embaixador em Brasília. Mario Maranhão, que cobria saúde enquanto estudava medicina tornou-se eminente cardiologista e presidente da Federação Internacional de Cardiologia. José Kalkbrenner Filho, o Kalk, era chefe da fotografia e campeão brasileiro de ciclismo. Parava de para o almoço no Restaurante Zacarias exatamente às 12h, nem um minuto mais, mesmo que a Catedral estivesse pegando fogo. Não há grande atleta impontual.
Ganhei uma certa autonomia para escrever reportagens sobre assuntos gerais e, em momento de insensatez, produzi uma crônica intitulada “Nós, as Formigas” que mostrava como o homem é pequeno, principalmente quando observado pela janela da um Douglas DC-3 da TAC – Transportes Aéreos Catarinenses, que tinha a melhor tarifa para São Paulo talvez porque a porta do avião às vezes abria em pleno vôo. A crônica foi caridosamente publicada no Suplemento Literário do DP, editado pelo Silvio Back depois da saída de Eduardo Rocha Virmmond, que continuou escrevendo crítica de cinema, música e teatro. Às vezes o primeiro caderno ficava aberto até a madrugada, à espera da primeira crítica de Virmmond sobre uma peça que estreava no Guairinha.
* * *
.
.
1961, início do governo Ney Braga. Um novo fotógrafo, cara desconhecida, vindo de Santa Catarina, ofereceu uma pauta. Descobrira que o médico responsável pelo internamento de pacientes no Hospital Psiquiátrico Nossa Senhora da Luz não controlava as recaídas dos doentes. Deixava com a esposa, em casa, um bloco de guias de internamento pré-assinadas para emergências. O fotógrafo queria ser internado como doido, com uma câmera Minox escondida na perna, para documentar o horror daquele hospício.
O jornal resolveu bancar o projeto. Levei o fotógrafo em meu carro à casa do médico. A mulher dele apareceu na janela. “O Elias teve uma recaída”, informei, mostrando o “paciente” no banco de trás, agitando-se entre dois grandões da oficina. Ela deu uma olhada, puxou uma guia de internamento que ajudei a preencher tomando cuidado de anotar a profissão do internado: “Jornalista”.
Haviamos combinado que ele levaria umas notas graúdas para emergência. Se quisesse apoio deveria gratificar um dos enfermeiros para ligar pedindo “um maço de Hollywood”. Passou uma noite; na tarde seguinte tocou o telefone de minha casa. O Elias está pedindo que leve urgente um pacote de Hollywood, transmitiu o enfermeiro.
Um pacote? Fomos correndo buscar o colega – um advogado, dois fotógrafos, dois repórteres. O diretor só autorizou a saída depois de receber ordem do Secretário da Saúde Justino Alves Pereira. As fotos da Minox mostravam doentes dormindo sem roupa no chão de cimento úmido, rolando sobre excrementos, comendo a ração nojenta.
O médico que assinou a guia de internamento foi punido, o diretor do hospital demitido. Na Assembléia Legislativa o tempo esquentou. Foram vários dias de troca de acusações entre governo e oposição. E alguém levantou a inevitável questão ética: pode o jornalista ocultar sua profissão para conseguir uma notícia? A discussão não foi concluída até hoje, com o agravante de que empresas jornalísticas são acusadas de não oferecer segurança aos repórteres que atuam em áreas de risco (sejam favelas do tráfico ou manifestações de blackblocs armados de morteiros e coquetéis molotov).
Não sei o que eu faria hoje se a situação se repetisse. Mas garanto que algumas informações de interesse da sociedade (como a vida no interior de hospitais psiquiátricos) só podem ser obtidas de um jeito pouco ortodoxo.
* * *
Não inventaram de repente o jornalismo de imersão. Ele foi descoberto pouco a pouco por jornalistas em busca de melhores informações.
Atenção: ninguém fala em revelar a completa verdade sobre o sistema de saúde pública, ou a polícia, ou as mutretas para ganhar licitações. Gosto de uma declaração do Leon Dash, que escreveu no Washington Post. “Não existe verdade absoluta. Há casais que passaram a vida juntos e ainda não se conhecem completamente. Todos temos segredos que jamais dividiremos com alguém. O que procuro em meu trabalho é chegar o mais perto possível da verdade sobre os motivos e o modo como as coisas foram feitas. Mais perto da verdade do que a maioria das pessoas, inclusive os formuladores de políticas públicas.”
Leon Dash começou a ficar famoso às 4 horas da madrugada do dia 18 de abril de 1995, quando Rosa Lee Cunningham, principal personagem da série “Rosa Lee: Poverty and Survival em Washington”, entrou no hospital onde iria morrer três meses depois com diagnóstico de Aids. Naquela mesma manhã, Dash compareceu ao funeral do neto de Rosa Lee, de 15 anos, Rico, assassinado por traficantes de crack. A série de oito reportagens está na coleção do Washington Post do 18 a 25 de setembro de 1995 e recebeu o Prêmio Pulitzer.
Um exemplo de jornalismo de imersão. Para escrever a série, Dash viveu durante meses da comunidade de Rosa Lee, participando do dia a dia de traficantes e outros criminosos. “Minha intenção, ao escrever as matérias, foi fazer o leitor se sentir tão desconfortável e inseguro como eu”, disse em entrevista a Robert Boynton. (The New Journalism, 2005, Vintage Books, Random House)
* * *
Há mais. O resto fica para outro dia.
Para concluir, vale relembrar que o crime da esquina é mais importante do que a matança no Oriente Médio. Jornal tem que ser local. Quem desobedecer este mandamento está condenado a morrer por falta de leitores. Não adianta noticiar a prisão do pequeno traficante se o repórter não se prepara para cobrir o crime de colarinho branco – pois é lá que está o verdadeiro bandido, cercado de advogados e contadores. Lembro finalmente que jornalismo é treinamento – ninguém melhora o estilo se não mantiver a rotina de escrever ao menos mil palavras por dia.
Segue a letra da Sofia:
(*) – O Juvevê todo chorou
Bacacheri emudeceu
Quando a notícia se espalhou
Que a Sofia desapareceu.
(Bis)
O que será dos carnavais sem a Sofia
O que será dos maiorais sem a Sofia
A vida não pode ser boa
Por que a turma vai sambar a toa
Sem a Sofia
Sem a Sofia
Sem a Sofiaaaaaaa.