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O hotel de Barbosa Ferraz era de madeira, sem pintura. Pelo lado de fora, uma escada estreita levava ao pavimento superior. No quartinho, ao lado da cama, uma tampa de doce de leite servia de castiçal para a vela que a dona me entregava. Madeira + vela = incêndio.
-Não preciso vela.
-Todo mundo precisa vela. A luz evita o barbeiro.
-Barbeiro?
-O bicho barbeiro. Tem um ali na parede, tá vendo? Mas ele só morde no escuro.
Fui dormir no banco de trás do Fusca do Aristeu. No escuro. No calor. Sem bicho barbeiro.
Aristeu Brandespin era o dono da revista NP – Norte do Paraná, que nos levava, o Milton Cavalcanti e eu, para mais uma viagem ao Noroeste, onde várias cidades recém-criadas comemoravam aniversário. A da vez era Umuarama, nascida em 1955, que festejava dez anos.
A data merecia um caderno especial – matéria paga – no próximo número. Uma “edição maravilhosa”, na gíria dos picaretas. Não adianta negar, éramos picaretas. Mas picaretas circunstanciais, transitórios, desempregados pelo golpe de 64, que ceifou a redação da Ultima Hora.
Então, como um anjo, surgiu o Aristeu. Precisava de quem escrevesse as reportagens especiais. Nós. Milton conhecia história e economia paranaense, escrevia bem, fotografava com competência, sabia revelar filmes e usar o ampliador. Para completar, dominava a arte da diagramação, que aprendeu com Marcel Leite no antigo O Dia. Eu escrevia depressa e precisava ganhar dinheiro. Formamos uma equipe mínima, completada pelo Miguel, motorista japonês com fama de maluco.
Naquelas estradas sem asfalto e com muita areia solta não havia ninguém melhor que o nosso Miguel. Ao chegar no alto do morro mandava a gente descer e seguir a pé. Acelerava, entrava no areião a cem por hora tentando manter as rodas longe dos sulcos deixados pelas rodas dos caminhões. Às vezes conseguia – e seguíamos viagem. Às vezes o carro ficava naquele mar de areia e os três empurrávamos.
Se fracassássemos, o jeito era esperar o ônibus. Os passageiros desciam e tiravam o Fusca do atoleiro. Ou a viagem deles não prosseguia, porque a estrada só dava passagem a um veículo de cada vez.
No fim do dia seguinte, chegamos a Umuarama, pouco mais de dez mil eleitores e uma praça principal que resumia a cidade. O Aristeu foi falar com o prefeito, com quem tinha combinado a matéria paga. Tinha crédito para isso. Em 1957, fora o publisher da famosa Maringá em Revista, cujos exemplares circulavam de prefeitura em prefeitura por todo o Norte, como modelo de documento bem feito sobre a vida de uma cidade e de seus pioneiros.
A conversa com o prefeito só tinha um aspecto perigoso. E se ele mandasse fotografar uma ponte no distrito de Perobal? Ou em Lovat? Ou na Serra dos Dourados? Era mais calor, areião e um dia de atraso no trabalho. Felizmente as obras escolhidas estavam todas na sede.
Cavalcanti já sabia onde era o japonês. Em todas as cidades do norte, sem falhar uma só, um japonês dominava o mercado fotográfico e concordava em alugar as cubas e o ampliador por algumas horas.
De manhã cedo, Milton, Aristeu e o prefeito foram visitar a cidade; eu fiquei com o Secretário da Prefeitura, que tinha os números, os custos e sabia a importância de cada mata-burro concluído. À tarde, gravamos uma entrevista com o prefeito no meu Sony de carretel e fui com a Lettera 22 para uma sala dos fundos do hotel, a nossa redação.
Já madrugada, a edição maravilhosa começou a ser diagramada. Estilo revista Manchete, com grandes fotos sangradas, títulos em corpo 72, chamadinhas em corpo 24.
Lá pelas 7 da manhã estava pronto o caderno. Fomos tomar café com o Aristeu, que examinou o material, achou bom e pediu mais fotos para trocar se fosse necessário.
Não foi. O prefeito aprovou tudo, menos as 16 paginas. Ficava muito caro. Milton voltou para o laboratório, produziu novas fotos e tudo foi rediagramado em 12 páginas. Ficou um pouco menos com cara de Paris Match, mas estava bonito. Mais do que bonito – era um informe honesto e real, sem adjetivos e advérbios. Mais um documento sobre o Norte, o novo Paraná que explodia de tanto café e tinha em Londrina o terceiro aeroporto mais movimentado do Brasil, depois de São Paulo e Rio de Janeiro.
O Milton aproveitou o Norte. Consolidou no cafezal e no areião o que aprendera nos relatórios da Codepar, depois Badep. Tornou-se um jornalista importante para a Revista Paranaense do Desenvolvimento e outras publicações do Governo. Nascido em Pernambuco, criado na Bahia, poucos contribuíram como ele para entender a explosão econômica da cafeicultura e os dilemas estratégicos do desenvolvimento paranaense.