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Esquerda ou direita?

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gghghg A década de 1960 foi de escolhas políticas.

 

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Os anos 1960 foram de definição. Esquerda ou direita? Progressista ou reacionário? Nacionalista ou entreguista? Havia questões mais complicadas, que exigiam uma passada na Biblioteca Pública antes de responder: como decidir entre Trotski e Lenin sem ler ao menos vinte livros sobre a revolução russa? (Os melhores em espanhol ou francês). E outros vinte volumes para achar um lugar no gradiente do pensamento vermelho, que começava no anarquismo mais violento e chegava ao welfare state com chá das cinco na Fortnun & Mason.

Gostava de imaginar que estava do lado certo, sem ser um daqueles radicais chatos e monotemáticos. E aqui entrava a última pergunta: reforma ou revolução? Nem reforma, nem revolução – o importante era o movimento,  O PSB acreditava no socialismo moderado, que aceita conviver com o capitalismo, desde que consiga mitigar os efeitos mais cruéis do sistema. Para isso, discutíamos intervenções econômicas e sociais para o Brasil. O local era a sede do Partido Socialista Brasileiro, PSB, fundado em 1947 por João Mangabeira, Hermes Lima e outros pensadores como dissidência da União Democrática Nacional, UDN.

O diretório municipal de Curitiba, presidido pelo general Agostinho Pereira, ficava na Rua 15, a 200 metros do Clube Curitibano. Almoços de trabalho ocorriam no Bar Paraná, ao lado, que servia uma sopa húngara bastante decente.

Era um partido de trabalhadores intelectuais, como Antônio Houaiss, Rubem Braga, Joel Silveira, Evandro Lins e Silva, Evaristo de Morais Filho e Marcelo Cerqueira. Aqui, o diretório municipal era presidido pelo Colbert Malheiros e integrado por jornalistas como Jairo Regis, José Augusto Ribeiro, Milton Cavalcanti, Nilton Stadler de Souza, Carlos Augusto Albuquerque, Edesio Passos, Ronald Pereira, presidente da União Paranaense dos Estudantes, Luis Fernando Magalhães. E professores universitários como meu clínico Reginis Prochmann, Amilcar Gigante, Dante Romanó Jr e Sebastião Vieira Lins, ex-deputado constituinte ao lado de José Rodrigues Vieira Neto, que continuava a dirigir, na clandestinidade, o Partido Comunista Brasileiro.

Defendíamos o direito de greve, a educação universal e gratuita, a saúde pública para todos, a Petrobrás, a reforma agrária, a nacionalização de empresas estratégicas, a união dos países latino-americanos em um bloco econômico. Fidel Castro e Che Guevara eram referências de luta. E havia aquele papa bondoso, o João 23, que mandava trocar nossos medos pelos sonhos e esperanças.

Muitos eram jornalistas. Havia jornais de todas as tendências, criados para apoiar os partidos criados em 1945. Com a queda de Getúlio Vargas e o fim do Estado novo, surgiram três grandes partidos, a União Democrática Nacional, o Partido Social Democrata e o Partido Trabalhista Brasileiro, todos com seus jornais e rádios. O PSD era apoiado pela Gazeta do Povo, de Acir Guimarães, em sociedade com Moisés Lupion, também dono de O Dia, e do Correio do Paraná, de Londrina, e da rádio Guairacá. O Diario da Tarde, de Roberto Barroso, era da oposição. Havia a PRB-2, que dividia seu afeto entre os vários partidos, nos vários horários. E pequenos jornais e revistas, de sobrevivência incerta porque o caixa não era alimentado com regularidade nem pelo pessoal do governo, nem pelos grupos de oposição.

Com a saída do interventor Manoel Ribas, foi nomeado interventor Brasil Pinheiro Machado, que devia administrar as eleições atendendo a todas as forças políticas. O novo interventor, porém, nomeou um secretariado exclusivamente pessedista escolhido entre as tradicionais famílias do estado. Arranjou uma briga bem grande, que aumentou ainda mais quando começou a fazer política em causa própria, de olho na eleição.

Do outro lado estava Moisés Lupion, com suas indústrias e seus jornais. Com dois pré-candidados o PSD rachou. Lupion cooptou uma ala do PTB para que lançasse sua candidatura e entrou em campanha. A situação ficou insustentável para o interventor Pinheiro Machado, que acabou renunciando e sendo substituído pelo Tenente Coronel Mário Gomes da Silva, em outubro de 1946. O novo interventor, que contava com o apoio do PTB, prometeu eleições idôneas e pacíficas. Em janeiro de 1947, Lupion se elegeu em vitória  fácil contra o o deputado federal Bento Munhoz da Rocha Neto, do Partido Republicano. A candidatura de Lupion era praticamente invencível, porque conseguiu o apoio oficial.

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Aqui a história eleitoral se interrompe por alguns parágrafos porque é preciso falar do interventor Mario Gomes. Era um oficial alto, simpático, de sorriso aberto. Tipo de político adequado àquele tempo engraçado em que não havia mais ditadura, mas o pessoal ainda não tinha reaprendido como funciona a democracia.

Contem que o interventor assumiu e chamou o chefe do cerimonial para combinar o banquete de posse.

-O que temos para servir?

-Peru, excelência. A Granja Canguiri está cheia de perus.

-Que venha, chefe. E a farofa do recheio com bastante toicinho defumado.

Foi um sucesso. Os comensais elogiaram tanto que o interventor encomendou outro banquete para dali a quinze dias, quando se comemorava uma data cívica.

Mais louvores na festa agradabilíssima. E, em rápida sucessão, vieram outros ágapes onde foi servido peru na cerveja, à provençal, ao escabeche, estufado com farofa e sálvia, verdadeiras orgias gastronômicas.

O interventor ganhou um apelido, General Peru. Seis meses depois acabou a interventoria e não havia um único peru no Canguiri.

 

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Lupion lançou para sua sucessão o engenheiro Plínio Franco Ferreira da Costa e para o senado o desembargador José Munhoz de Melo. Não teve êxito. Bento Munhoz da Rocha tornou-se governador em 1950, em dobradinha com Getúlio Vargas. Lupion voltou em 55 para um segundo mandato e provou ser verdade que o segundo governo sempre é pior que o primeiro. Chegou a 1960 com o prestígio em frangalhos; graves acusações de corrupção mobilizaram o eleitor para o outro lado e a vitória ficou com Ney Braga, candidato em dobradinha com Jânio Quadros, o homem que prometia varrer a corrupção do Brasil.

A imprensa melhorou com a chegada de O Estado do Paraná, em 1950. Era do empresário Aristides Mehri em sociedade com Fernando Camargo. Nasceu para apoiar Bento Munhoz da Rocha, político e intelectual, assumiu o governo de um dos estados mais ricos do Brasil. Em 1950, o Brasil era o maior produtor de café do mundo e 50% do café exportado saia das lavoras paranaenses.

Em 1955 surgiu o Diario do Paraná e o diretor, Adherbal Stresser, era outro amigo de Bento, seu antigo diretor do Departamento de Divulgação. Era um jornal bonito, desenhado pelo argentino Benjamin Stainer, cujo caderno literário abrigou Temístocles Linhares, Eduardo Virmmond, Wilson Martins, Walmor Marcelino, Silvio Back.

O compromisso do governador era transformar o Paraná. Era um lugar de tropeiros e imigrantes; seria o laboratório da inovação política e administrativa. Asfaltou estradas asfaltadas, resolveu a crise de energia elétrica (fundou a Copel e construiu a termelétrica de Figueira), aumentou a rede escolar. Construiu o Teatro Guaira, a Biblioteca Pública e o Centro Cívico. Juscelino Kubitschek disse em várias entrevistas que Bento inspirou Brasília. Mas ninguém garante porque JK era um mineiro gentil.

E chegamos a 1962, com eleição em 11 estados e uma novidade: horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão recém-chegada ao Paraná. É o que determinava a Lei nº 4.115, de 22 de agosto de 1962. As emissoras de rádio e de televisão eram obrigadas a reservar um espaço de duas horas para a propaganda eleitoral gratuita nos 60 dias anteriores às 48 horas do pleito. Havia duas emissoras de TV em Curitiba: a TV Paranaense, canal 12, que foi ao ar em 29 de outubro de 1960, por iniciativa do empresário Nagib Chede. O pequeno estúdio ficava no último andar do Edifício Tijucas, no centro de Curitiba, e tinha uma coluna de sustentação bem no meio. A TV Paraná, canal 6, inaugurada logo em seguida, em dezembro, era dos Diários Associados e ocupava o térreo e um andar do edifício Mauá, ao lado do Diario do Paraná.

Havia duas vagas para o senado e para preenche-las houve uma acomodação entre os conservadores e o trabalhismo, que resultou nas candidaturas do banqueiro Adolpho de Oliveira Franco e de Amauri Silva.

O horário eleitoral na TV era uma atração e um desafio. Ninguém entendia de televisão, José Augusto Ribeiro ficou encarregado do programa do PSB porque era um jornalista muito bom e ótimo orador. Na primeira visita ao estúdio da TV Paraná descobrimos que ia ser jogo duro. O dono mandou avisar que as câmeras estariam ligadas no horário mas não haveria operador. A luz resumia-se em um panelão na cara do candidato, que devia se mover até um ponto marcado a giz no chão. Parado ali, estava enquadrado no centro das telas situadas 20 andares abaixo. A loja Stier, no térreo do Edifício Garcez, oferecia suas amplas vitrines para que o povo pudesse assistir aos programas eleitorais. A outra alternativa era a sala de estar da casa de algumas centenas de curitibanos ricos. Imediatamente surgiu o televizinho, personagem que brilhou nos primeiros anos da TV, consolidando amizades e relações comerciais.

Os outros partidos tiveram mais recursos e agrados dos Diários Associados – slides, filmes, música de fundo, cortes de câmera, wipes e outros truques. A câmera parada do PSB era uma contribuição da empresa à luta contra o avanço do perigo comunista no Brasil.

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Sem ter o que fazer, me alistei no trabalho de base, resultado da coligação não oficial entre o PSB e o Partidão. Um domingo fui com Expedito Rocha para Santa Quitéria. Descemos na praça, ele se dirigiu ao bar da esquina e pediu uma cachaça. Durante horas admirei meu mentor conversando com um e com outro, descobrindo os problemas deles no trabalho e explicando como era possível resolver muita coisa se todos agissem juntos. Quando fomos embora, quatro ou cinco pingas depois, ele sabia tudo sobre as fábricas e tinha acertado duas reuniões.

Expedito Rocha – como o Brasil confirmou mais tarde – era um artista.

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Houve queixas pelo mau atendimento. O juiz eleitoral decidiu da melhor maneira possível, porque a lei era muito genérica.

(Observação: Os detalhes – alguns interessantíssimos –  serão incluídos na próxima semana, após eu concluir a pesquisa no Tribunal Regional Eleitoral.)

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Quando terminou a apuração os paranaenses tinham dois novos senadores: Adolpho de Oliveira Franco, da UDN, e Amauri Silva, do PTB. Amauri e seu suplente Rubem de Melo Braga tiveram 390.057 votos. Adolpho (suplente Milton Menezes, ex-prefeito de Londrina) teve 326.057.

Dos 780 mil votos válidos mais de 60 mil foram para Sebastião Vieira Lins, candidato do PSB, que peregrinou por todo o Estado de ônibus. Nas cidades quentes do Norte andava de sandálias como São Francisco.

Para deputado estadual, Amilcar Gigante obteve mais votos do que metade dos 45 deputados eleitos, mas não conseguiu um assento na Assembléia porque o sistema eleitoral era, e ainda é, do voto proporcional. Candidatos menos votados, cujos partidos integravam coligações, beneficiaram-se das sobras eleitorais. Mas ninguém queria se coligar com aquele PSB.

O sistema é injusto? Fizemos essa discussão e eis a conclusão irretrucável: toda representação popular é injusta porque vai contra a ideia de democracia, que é o governo do povo, da democracia direta. Do referendo, do plebiscito, do projeto de lei de iniciativa popular, do recall, das assembleias de bairro.

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Está nos livros de História que o Marechal Deodoro, em 1889, não proclamou a democracia, proclamou a república.

A constituição republicana de 1891 copiou o modelo federativo centralizador e presidencialista dos EUA. Alexander Hamilton e James Madison deixaram claro, nos Papeis Federalistas, que a essência dessa república consistia na exclusão do povo, como ente coletivo, de qualquer decisão do governo. Em vez do povo, as decisões seriam tomadas pelo conjunto de “representantes” populares. “Eles têm a sabedoria, nas palavras de Madison, para discernir o que é melhor para o país”.

Deu no que deu.

Lá, a tentativa de invasão do Capitólio para impedir a posse de Joe Biden.

Aqui, o Bolsonaro e o insano projeto da volta do voto impresso.

 

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Posted on 6th agosto 2021 in Sem categoria  •  No comments yet
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O Brasil de ontem ensina o Brasil de hoje

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dghghghg O segundo volume de Escravidão pega o século XVIII.

 

 

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O segundo volume da trilogia Escravidão, do jornalista e historiador Laurentino Gomes, traz  preciosa contribuição para entender o momento atual. Com paciência e método, o autor pesquisou um longo período da história do Brasil. Na essência da prática escravocrata apareceram malfeitos dos administradores portugueses. O método não mudou muito.

Vejam, por exemplo, esse dom Lourenço de Almeida, primeiro governador da capitania de Minas Gerais, desmembrada da de São Paulo em 1720. Um bandidaço. A Corte demorou para descobrir seu golpe, que era de incrível simplicidade: retardava decisões importantes e aproveitava o tempo para meter a mão.

Eis a história: descobriram em 1731 que o Brasil não tinha só ouro em abundância; havia também uma fortuna em pedras preciosas em Morrinhos, Minas Gerais. Foram levar a boa notícia a dom Lourenço, que elogiou a descoberta e não decidiu nada; ficou calado durante dez anos. Nesse período chamou sua turma – o ouvidor da comarca, um padre e um vendedor que conhecia o caminho das pedras.

Durante uma década, a quadrilha extraiu e vendeu diamantes ilegalmente. Dom Lourenço tornou-se um dos homens mais ricos de Portugal, com fortuna avaliada em 18 milhões de cruzados, o dobro do que possuía quando era capitão-mor na Índia.

Caiu porque não se aguentou e começou a exibir a patrimônio. Nas cerimônias oficiais, conta Laurentino, um de seus criados ostentava no dedo uma pedra de diamante de 82,5 quilates, cerca de 16,5 gramas.

Isso tudo lembra o caso das vacinas, onde o ministro chamou uma turma de colegas e os colocou em postos-chave. Ficaram encarregados de tomar ou não tomar providências sobre as vacinas, que valem como diamantes numa pandemia. Isso permite, na pior das hipóteses, que um jogue a culpa no outro, até que os investigadores (e o público) se confundam com tantas versões.

Ninguém tira essas coisas espertas do nada. Na cabeça de um Pazuelo o pesquisador é capaz de achar o DNA de um dom Lourenço.

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Posted on 26th julho 2021 in Sem categoria  •  No comments yet
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De mudança

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fffgbb O prédio é de 1970, projeto de Lubomir Ficinski e Luis Augusto Amora.

 

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Esqueça a Rua Coronel Dulcídio, 800 − Batel − CEP 80420-170 − Curitiba − PR.

A Copel decidiu mudar de sede. Vai para os cafundó – Rua José Izidoro Biazetto, 158.

Perto do mal afamado Motel L’Amour , que fica na Rodovia do Café, sentido Campo Largo.

Claro que o imóvel do Batel vale um dinheirão que pode ser transformado em novos investimentos.

Ultimamente, a Companhia vem comprando sistemas de geração eólica.

Mas, se você precisar falar com alguém da diretoria e for visto a caminho do motel L’Amour vai dar problema.

A velha sede, um dos ícones da arquitetura paranaense, foi avaliada em 32 milhões de reais. Uma pechincha.

Quem comprar terá um imóvel supervalorizado, num bairro chic e comercial. O terreno de três frentes ocupa uma área privilegiada. Talvez vire sede de alguma multinacional. Ou banco? Ou shopping?

E que tal se virar igreja, um negócio da moda que consome muita energia?

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Posted on 19th julho 2021 in Sem categoria  •  No comments yet
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HÁ QUEM NÃO GOSTE DE DECIDIR NOS PENALTIS

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gghnnhhnnh Os italianos comemoram a Copa. (foto NYTimes)

 

 

 

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A dor de perder uma Copa da Europa em casa foi muito grande. Os ingleses foram ao Estádio de Wembley às dezenas de milhares. Queriam comemorar o título e estavam (ainda estão?) convencidos de que seu futebol é superior ao dos outros países.

Após a derrota nos penaltis foi um lamento só. Um torcedor escreveu ao New York Times:

“Foi divertido assistir ao jogo. Mas não posso acreditar que o vencedor da Copa da Europa possa ser escolhido numa disputa de penaltis.

Uma solução fraca.

Por que não continuam jogando a prorrogação até uma equipe fazer um gol? No hockey é assim.”

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P.S. – Hockey é aquele esporte civilizado em que, quando sai briga, um jogador bate no outro com o taco. Por que não usam as chuteiras, como no futebol?

Posted on 12th julho 2021 in Sem categoria  •  No comments yet
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Um furo no teto do Bar Paris

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gghhhh De estilo incerto e sacada de fanada elegancia, o Bar Paris hoje é mais uma loja de móveis de segunda mão na Riachuelo.

 

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Já foi Rua da Carioca da Cruz. Foi também Rua Lisboa, talvez porque boa parte dos comerciantes que se instalaram ali eram portugueses. Mas em 1871 tornou-se Rua Riachuelo, para homenagear a batalha que a armada imperial venceu na guerra contra o Paraguai.

A rua teve dois restaurantes famosos: o Onha, que servia a melhor feijoada de Curitiba aos sábados e às quartas-feiras no almoço e no jantar. Só quem não pretendia dormir antes das três tinha coragem de enfrentar a feijoada noturna. O Onha virou ponto de boêmios, que deixavam a mesa para fazer a digestão caminhando pela cidade, ou em um salão de sinuca, ou dançando na Caverna Curitibana, ali ao lado. O outro restaurante, o Paris, era para depois do cabaré. Servia às bailarinas pratos fundos de canja de peito de frango e aos acompanhantes um afamado filé mignon.

O Onha era da paz, o Paris, da discórdia. A partir de meia-noite começava a ferver. Culpa do alcool, pó ou anfetamina consumida horas antes. Alguns confrontos se resolviam no grito, mas de vez em quando pintava um cara violento. “Esfaqueado no Bar Paris” era título que frequentou mais de uma vez a capa da Tribuna ou do Diário Popular. Certos contendores preferiam quebrar uma garrafa de cerveja no canto da mesa e avançar com o que sobrou na cara do adversário. Tiros eram malvistos – uma temeridade porque o alvo estava sempre a menos de dez metros e é preciso ficar muito bêbado para errar nessa distância.

-Sacou tem que atirar no cara! – berrou indignado um delegado de polícia, tomando a arma da mão de um loirinho trêmulo. O rapaz – na verdade, quase um menino – puxou a arma, deu uma vacilada e atirou para cima. Foi preso, enquadrado no artigo 132 do Código Penal. “Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente”.

Na delegacia de plantão levou uns petelecos do carcereiro. Não fechou o olho durante o resto da noite porque o enorme companheiro de cela avisou: “Se dormir eu te estupro!”. O cara odiava gente que saca mas não atira.

O furo da bala jamais foi consertado. Nem no teto do restaurante, nem na cabeça do loirinho.

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SOBRE A RÁDIO DA BOCA MALDITA E A “CONSPIRAÇÃO DOS NOTÓRIOS”

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Está na rede nova edição do Jornal Laboratório Marco Zero, da Uninter. A matéria de capa, assinada pela aluna Patrícia Lourenço, é sobre uma rádio comunitária na Boca Maldita, no centro de Curitiba, que recebeu licença do Ministério da Comunicação, mas nunca foi ao ar. Um horror.

A matéria dá a entender que a rádio não funcionou porque “oito notórios senhores” calaram um espaço democrático, impediram que a comunidade do centro da cidade tivesse voz.

Não sou notório mas me achei entre os oito citados. Assusta a gravidade da conspiração denunciada pela estudante. “A  Rádio da Boca, além de não ter voz, silenciou todas as possibilidades do centro da cidade ter uma rádio comunitária ativa tocada por outras instituições. “

Daqui do Juvevê, bairro que tem sua voz no valoroso Jornal do Juvevê (e que não impede a existência de outras vozes), tento me solidarizar com a indignação da futura colega mas não consigo. A história do “espaço democrático calado” não é real.

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Um parêntese para contar a saga de Julio Eduardo Gineste, um ex cocheiro de Paris, que em 1878 ganhou a concessão da linha de diligências entre Curitiba e Ponta Grossa. Cada diligência levava seis pessoas. O tempo de viagem era de três dias, mas ele ganhava seu dinheiro.

Dezoito anos depois, em 1896, chegou a Ponta Grossa o primeiro trem de passageiros e o tempo de viagem caiu para três horas.

Tchau, diligências. O negócio do Julio Eduardo Gineste virou pó.

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Acho que isso ocorreu com a Sociedade Civil Boca Maldita. A ideia da rádio surgiu no tempo da ditadura, provavelmente no governo Figueiredo. Vieram as Diretas Já, veio Tancredo, veio Sarney, veio a Constituição Cidadã, veio Collor. O pedido só foi atendido quando Lula era presidente.

Aí, inebriada de tanta democracia, Curitiba era só felicidade, do Bar do Leleco ao Ile de France. Nenhuma voz silenciada, nem a dos bêbados do Bar Bebedouro, nem a dos pornógrafos do teatro da meia-noite, nem a dos chatos que invadiam a Livraria do Chaim nas manhãs de sábado. Rádio prá quê?

Havia uma overdose de comunicação.

Curitiba hospedava, em 2003, doze estações de rádio, cada qual com seu nicho de público. Transmitiam em FM, ondas curtas e médias, e tinham seus sites. Havia ainda rádios em São José dos Pinhais, Colombo, Araucária e Campo Largo, que falavam para a capital.

O interesse do público estava também no UOL, Universo Online, no ar desde 1996, com serviços de bate papo, edição diária da Folha de São Paulo, notícias do New York Times, Notícias Populares, revista Isto É. Mais O Estado de S. Paulo, Veja, Globo, a Rede Bandeirantes.

E nas as redes internacionais. O serviço de internet da BBC nasceu em 1994. A tragédia da princesa Diana, seu amor impossível pelo Dodi, a morte chocante foi acompanhada por 2,5 bilhões, entre eles muitos curitibanos que madrugaram no computador, pulando da BBC para o Daily Mail, para o Times, para o Le Monde.

Naquele momento, ganhar uma concessão de rádio era uma furada tão grande quando operar uma linha de diligências para Ponta Grossa na véspera do trem de passageiros.

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P.S. – Um pleito aos futuros jornalistas: estudem sociologia. Saibam que não há comunidade, nem identidade, muito menos fraternidade em regiões absolutamente heterogêneas, como o centro de grandes cidades. Descubram que o curitibano vai à Boca para destilar rancores, desejar a mulher do próximo, achar um adversário político ou esportivo. Daí o nome Boca Maldita. Aqui está combinado: ninguém fala bem de ninguém.

Mas o café é bom.

 

Posted on 9th julho 2021 in Sem categoria  •  2 comments
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Voltamos ao normal

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dfdfff Uma bela pedalada

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O que é normal?

Não sei. Mas consigo definir o contrário do normal.

Vivemos um tempo aberrante, bizarro, estranho?

Aparentemente não. As pessoas saem às compras, pedalam no parque, compartilham baseados, beijam na boca, curtem o pôr do sol.

Observo tudo isso em 50 minutos de caminhada cautelosa pelo Bosque do Papa, com uma rápida passada nos fundos do MON.

O mundo é testemunha de que dezenas de milhares de pessoas foram para as praças e avenidas de 157 grandes cidades pedir impeachment do cara. Mesmo com chuva e frio.

Quando vi o pessoal de Florianópolis com faixas e bandeiras, apesar da chuvarada de 140 milímetros, do frio e do vento leste. terminei de me convencer.

Pronto. Normalizou.

É natural que isso aconteça. A turma cansou de esperar o anúncio oficial do fim da pandemia, a informação de que 75% dos brasileiros estão vacinados com duas doses e que hospitais vazios aguardam clientes para procedimentos eletivos.

O dermatologia chama porque agora tem tempo para tirar aquele cisto sebáceo.

A personal trainer avisa que voltou a dar aula presencial.

O lider da turma da feijoada quer saber se você está disponível no sábado que vem.

É, gente, a normalidade voltou.

Apesar dos números assombrosos de vítimas do vírus e do Jair, apesar dos hospitais lotados, decidiu-se que voltamos à normalidade.

Todo mundo foi às compras no Dia dos Namorados. Quase todos passaram para tomar uma no Largo da Ordem.

Mas, e os números?

Os números – como disse uma vez o Parreira  – os números são apenas um detalhe.

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hhmmn Rua 15 na véspera do Dia dos Namorados.

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Posted on 20th junho 2021 in Sem categoria  •  No comments yet
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Jaime Lerner e os planeadores

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nnmnmn Foto de José Kalkbrenner.

 

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I

 

Antes, anos 1920, a Nova Curitiba com as paralelas leste-oeste Visconde de Guarapuava, Sete de Setembro, Silva Jardim, Iguaçu, Getulio Vargas. Prefeito Moreira Garcez.

Em 1941, o Plano Agache. Noticia nacional, porque monsieur Agache era famoso por seus planos anteriores, em São Paulo e Rio. Um dos desafios do urbanista era acabar com os engarrafamentos na praça Tiradentes. Imagino uma manchete de jornal: Vamos acabar com o engarrafamento, diz M. Agache! Pas de embouteillage! Assim, com ponto de exclamação.

1953. Centenário do Paraná. O Estado é rico. O governador Bento Munhoz da Rocha inicia as obras do Centro Cívico, projeto de arquitetos paranaenses. Começa a construção do Teatro Guaira. Da Biblioteca Pública do Paraná. O traço do modernismo chega com a Exposição Internacional do Café.

1954. A execução do Plano Diretor é interrompida. O prefeito Ney Braga encaminha mensagem à Câmara Municipal revelando que não há dinheiro para as desapropriações. Como consolo, inaugura a Rodoviária da João Negrão e o Mercado Municipal.

 

II

 

Vestígios do Plano Agache. O Centro Cívico, as galerias na Rua 15, entre Doutor Muricy e Barão do Rio Branco, a avenida Nossa Senhora da Luz, na parte leste da cidade.

Década de 1960. O Plano Diretor. Papel fundamental de Ivo Arzua, prefeito eleito em 1966. Reuniu a inteligentzia, promoveu debates. Os interlocutores eram a elite da cidade e professores da Faculdade de Arquitetura da UFPR, recém-criada. Novos professores chegavam de Minas Gerais, do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Mudou muita coisa na cidade, começando pela construção civil. Projetos do Vilanova Artigas. A inauguração do Edifício Canadá, na Comendador Araujo. Licitação do Santa Mônica Clube de Campo, vitória de Forte Neto&Gandolfi. É a entrada da arquitetura brutalista, de Le Corbusier, em Curitiba. José Maria Gandolfi, falecido dia 19, e seu irmão Roberto eram alunos de Paulo Mendes da Rocha, que morreu no último dia 23, na Faculdade de Arquitetura da Mackensie.  Dias de luto: entre 19 e 29 a arquitetura brasileira perde três nomes fundamentais.

 

III

 

  1. Haroldo Leon Peres é nomeado governador.

Famoso diálogo entre Médici com Ney Braga, Aciolly Filho e outros políticos paranaenses.

MEDICI – Nosso escolhido é o deputado Haroldo Sanford.

ACIOLLY – Esse deputado é do Ceará, general. Não seria o Haroldo Leon Peres?

Meses depois, Peres é acusado de chantagear o empresário Cecilio do Rego Almeida, que apresenta uma gravação da conversa, feita na praia de Copacabana. Está na revista Veja, que sumiu das bancas. Denúncias de corrupção se multiplicam. Chega ao Aeroporto Afonso Pena um coronel da Presidência da República para resolver o problema. Na madrugada, o governador desaparece de Curitiba levando apenas uma mala, que alguns garantiam estar pesada de tantas notas de dólar. Deixa a carta de renúncia, de uma linha.

O prefeito Jaime Lerner, nomeado por Peres, precisa seguir administrando a cidade, mas não tem mais o apoio ao Palácio Iguaçu. Reúne o grupo de arquitetos, urbanistas e advogados para avaliar o que fazer. A decisão é colocar imediatamente em prática o Plano Diretor.

 

IV

 

O restaurante Peking ficava no começo da João Gualberto, onde ergueu-se um prédio desajeitado. No andar de cima havia uma grande mesa redonda, de uns doze lugares. Jaime e auxiliares almoçavam juntos quase sempre. Nireu Teixeira, Dario Lopes dos Santos, Franchete Rischbieter, Dulcia Auriquio, Rafael Deli, Groff, Ludomir Ficinski,  Eduardo Rocha Virmmond.

E planeavam, como dizia o Sergio Mercer, autor em parceria com Ernani Buchman, de famoso chachachá do IPPUC (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba) com o refrão: “Planea, planea, planea/ só planea”. É verdade. Nos arquivos do instituto você vislumbra o futuro de Curitiba – inclusive o futuro que foi planejado e não se realizará, como é o caso do Plano Preliminar do Metrô, concluído em 1969. Trabalho de Rafael Dely, Domingos Bongestabs, Augusto Fayet e Oswaldo Navarro.

Voltamos ao Plano Diretor de Curitiba. Ele não está pronto. Falta definir muita coisa. Melhor, a oposição terá menos para criticar, responde Jaime, não o urbanista, o marqueteiro, cuja competência paradoxalmente ia aumentar com o fim da ditadura e a derrota na eleição municipal de 1985.  Uma eleição é ganha nas últimas 24 horas, ele descobriu da maneira mais dolorosa possível – perdendo por poucos votos.

 

V

 

O resto é história. Em certa madrugada a Rua 15 foi fechada aos veículos e ocupada por máquina e operários. Após o fim de semana, amanheceu Rua das Flores, só para pedestres. Um anúncio da Prefeitura dizia: “A cidade é do homem, não da máquina”.

Era uma reapropriação do velho centro pelo curitibano que andava a pé, de alpargata ou tênis, talvez um sapato Samello, sem pressa de ir embora porque a conversa estava boa. O mundo começou a olhar de um jeito diferente para Curitiba. Como essa cidade consegue se reinventar de maneira tão brilhante?

A operação não agradou aos lojistas, que tinham medo de perder clientes. A moda era estacionar o Ford Thunderbolt ou Buick Electra em frente da loja, entrar para escolher um sapato ou gravata e depois atravessar a rua para conversar no Senadinho. No fim de semana, o cortejo de carros fluía lentamente pela principal rua da cidade. A elite gostava. E uma parte da elite estava no Tribunal de Justiça, pronta para julgar os mandados de segurança dos comerciantes.

Ninguém falava em batalha de narrativas. Ainda não era moda. Mas houve uma batalha de narrativas entre os que contavam a história da Curitiba do automóvel e os que anunciavam o advento da bela Curitiba dos pedestres.

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Posted on 27th maio 2021 in Sem categoria  •  No comments yet
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O ENGENHEIRO ACHAVA QUE AQUI SERIA UMA ESTRUTURAL

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A rua está feia. (Foto Tribuna PR)

 

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I

 

Nasci na rua Cruz Machado, antiga Rua do Tesouro, que na década de 40 era breve, estreita, encantadora. As casas e sobrados ostentavam o estilo difuso dos mestres-de-obra poloneses e italianos. Calçadas estreitas, rua de macadame com pedras mal colocadas. Bem diferentes do petit pavê da Avenida João Pessoa, o centro chic, que ficava apenas 300 metros mais para o sul.

Ainda ninguém havia sonhado em prolongar minha rua rumo ao oeste. Curtinha, ela começava na Voluntários da Pátria e desembocava com razoável dignidade na Praça Tiradentes, depois de passar pelo Colégio Estadual do Paraná.

Sobrados de janelas altas e bangalôs avarandados abrigavam famílias de classe média, quase todas muito católicas, que jejuavam, confessavam e iam à Missa do Galo. A democracia religiosa era atestada pelo templo adventista, revestido de granito cinza, que cantava glória a Jesus nas noites de sábado. E também pela sinagoga, cinquenta metros adiante, ao lado da praça Santos Dumont.

A sinagoga abrigava, na parte de baixo, o Pedrão e o Ivo, filhos do zelador.  No jogo de gude ele deixava escapar notícias sobre misteriosos ritos em hebraico, que se desenvolviam na nave sombria. Perguntei ao doutor Maranhão, advogado muito culto sobre aquele mistério. Ele riu: os judeus rezavam pelo Torá, que era o Velho Testamento dos católicos.

Aprendi então a primeira lei do jornalismo: só é notícia se for confirmada por duas fontes.

 

II

 

No porão do templo adventista não morava ninguém, mas ao lado, no Juizado de Menores, viviam o Divanil e o Nelsinho, negros, integrantes da Escola de Samba Colorado, que ensaiava para o Carnaval no estádio do Ferroviário. Divanil no surdo, Nelsinho um ás do tamborim.

No centro de tudo estava o poeirento campinho do Cruz Machado Futebol Clube, onde hoje fica o mal falado Edifício São Paulo. Ali gastei muito sapato em memoráveis jornadas esportivas. Vitórias e derrotas. Uma vez perdemos com desonra para uns polacos enormes da Saldanha Marinho. Além de deixar o campo no maior deboche, os ganhadores ainda levaram nossa bola Goá número 5. Isso não podia ficar assim. Numa folha de caderno escolar escrevi a notícia sobre o evento esportivo. A matéria foi entregue, por uma janelinha de madeira, ao funcionário que cuidava da oficina do Diário da Tarde, na rua Doutor Muricy, ao lado da pastelaria do chinês Ton Jon.

No dia seguinte meu pai chegou com o Diário da Tarde, que comprava diariamente para ler o artigo do jornalista Roberto Barroso. Estava lá, na íntegra, a nota de uma coluna no pé da página de esporte: “Cruz Machado FC goleia Saldanha por 5 a 2. Dois gols da vitória foram do ponta esquerda Aderbal.”

Aí fiquei conhecendo a segunda lei: o papel aceita tudo.

 

III

 

Falo da Cruz Machado como se ela tivesse alguma importância para o desenho urbano ou para a história da cidade. Não tinha. Importante era a Ermelino de Leão, quase na esquina de minha casa. Ela começava na avenida João Pessoa e chegava, mil metros depois, ao Alto do São Francisco, o Palácio do Governo.

Na Ermelino tinha tudo. Numa ponta, a Cinelândia. Os luminosos cinemas Opera, Avenida e Palácio e os menos gloriosos Odeon e Broadway. Nos dias de muita chuva o Rio Ivo subia até dois metros. Caixeiros das lojas corriam para colocar as mercadorias no seco. Mas a inundação fazia terríveis estragos.

No dia seguinte, com a volta do sol, colchões, edredons, cobertores e móveis eram postos para secar na calçada – mudas testemunhas da incúria das autoridades, como dizia num suelto nosso Diário da Tarde.

A água não chegava à nossa rua, mas era inquietante constatar que isso acontecia por uma diferença de um metro. A gente era fronteiriço. Vivíamos a um passo do desastre meteorológico.

Diferente era a situação de quem morava acima, na Augusto Stelffeld, como meu padrinho, o conceituado médico Benedito de Faria Amorim. O doutor Amorim era um nome mágico na cidade. Do centro, dos bairros, do Portão distante ou das colônias chegavam pacientes a seu consultório. Além de curar o corpo, oferecia remédios para o espírito, certezas que sua poderosa fé católica conseguia transmitir.

A casa do doutor Amorim, que visitava com minha mãe, cheirava a sachê de magnólia – ou àquilo que eu imaginava ser o cheiro de magnólia. Esta flor entrou no meu repertório botânico graças ao Gebran Sabbag, que morava na rua Inácio Lustosa, onde a Prefeitura plantou magnólias de ponta a ponta.

 

IV

 

Subíamos minha mãe e eu dois lances de escada de pedra e estávamos no caramanchão. As buganvilias floriam em setembro, vermelhas, amarelas, brancas e cor de rosa. Mais um lance e entrávamos pela porta de madeira escura com janelinha de cristal bisotê.

Os tacos do chão eram de madeiras nobres, claras e escuras, aplicados em rosetas. Mais cristal chanfrado nos vidros da porta de correr que separava a sala de estar da sala de música. A memória não quer acreditar que o piano fosse um simples Essenfelder, desses feitos no Juvevê.

Pela Augusto Stelffeld passava a divisa entre os dois estamentos sociais. Logo adiante estava o Palácio São Francisco, onde meu pai era ajudante de ordens do interventor Manoel Ribas.

A Ermelino de Leão, do Palácio São Francisco com seus tapetes persas e quadros de Andersen e Michaud ao baixio das casas pálidas com frente para a inundação – essa Ermelino de Leão é a grande metáfora social de Curitiba.

 

V

 

Outras metáforas seriam encontradas depois no Colégio Santa Maria e no Colégio Militar. Mas nenhuma teve a força da primeira, nem a graça das que encontraria quando começava no jornalismo e ao mesmo tempo estudava na Faculdade de Direito de Curitiba. As duas carreiras são confluentes.

Jornalistas e advogados têm um particular interesse em catástrofes, desvios de conduta e assassinatos em geral. Aprendem cedo que aumentam as vendas

Esse ensinamento estava fresco na minha cabeça dez anos mais tarde, quando chegou à redação da Ultima Hora curitibana um andarilho baiano. Pedia ajuda para fazer uma cruz bem grande. Pretendia levá-la nas costas até Santa Catarina, igual ao personagem Zé do Burro do filme Pagador de Promessas, que acabava de conquistar a Palma de Ouro em Cannes.

Nosso Zé do Burro queria entrar com a cruz na catedral de Florianópolis. Vocês ajudam? Não. Alguém sugeriu que transferisse a promessa para a Igreja do Rocio, em Paranaguá. Assim, sem sair do Paraná, teria a cobertura diária do jornal de maior circulação do Estado.

Zé do Burro concordou e tornou-se, da noite para o dia, personagem de todos os jornais – porque um jornal imitava o outro e todos sonhavam imitar o Jornal do Brasil – e também pelas rádios e pelas duas televisões que funcionavam em Curitiba na década de 60.

Quando chegou a Paranaguá com sua cruz esperava-se que houvesse, como no filme, um confronto entre ele e a autoridade religiosa. Proibido de subir as escadarias para depositar sua cruz aos pés da santa, seu martírio ganharia o noticiário nacional, até internacional.

Ocorre que o bispo de Paranaguá era um sábio. Em vez do confronto, decidiu ignorar a chegada do peregrino. A escadaria ficou livre e as portas da igreja abertas.

A história teria acabado aí se o repórter que cobria o assunto não tivesse cometido um erro, pressionado pelo estreito deadline do jornal e pela própria ansiedade. Enviou uma reportagem de véspera, com relato do confronto que não houve, do sofrimento que não existiu.

Os jornalistas chamam a isso de barriga. No caso, uma abençoada barriga, fecho de ouro de uma seqüência de reportagens que retratavam a realidade social, o sincretismo religioso, a multiculturalidade, a profunda humanidade da população do litoral paranaense – aí incluídas as moças do Mosquitinho, maior casa de mulheres da região, que largaram as atividades profissionais para se ajoelhar na estrada e pedir uma benção.

As vendas aumentaram tanto que Zé do Burro foi embora e as bancas continuaram pedindo mais jornais.

 

VI

 

O editor paulista recompensou os responsáveis pela barriga com um elogio e um ensinamento do Willian Randolph Hearst, magnata da imprensa americana. “Não tenham medo de cometer erros. O leitor pode gostar deles”.

 

Agora voltamos à Rua Cruz Machado.

Posted on 20th maio 2021 in Sem categoria  •  No comments yet
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A QUEDA E A QUEDA DA RUA CRUZ MACHADO

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“O sofrimento, se excessivo e demorado, deixa-nos insensíveis à dor”. Shakespeare

 

 

I

 

A tarde findou, a noite chegou e o Engenheiro lá. Ele e seu ajudante. Esticaram mais uma vez a trena na esquina da Voluntários, onde terminava a Cruz Machado, então uma agradável ruazinha residencial de cinco quadras, uma pracinha no meio. Mediram e remediram a largura da via e da calçada. Depois sumiram. Mais tarde, um piá contou que não tinham sumido coisa nenhuma. De trena e telêmetro, reapareceram na Visconde de Nácar, a paralela do outro lado da quadra. Novas anotações no papel quadriculado preso à prancheta.

Célia Andrade, conhecida como Língua de Ouro, ouviu falar dos homens e informou Malão, o gigolô que há oito anos zelava pelos seus negócios sexuais.

-É por causa da avenida que vão abrir aqui. Vai ligar o lado de lá com a Praça Tiradentes.

Animou-se.

-Bom pra nós, é coisa de mais de um milhão.

A fonte de Célia era fidedigna: o Engenheiro em pessoa. Decorreu a incontinência verbal do abuso de generoso vinho argentino que aqueceu um surubão na Casa da Otília. O Engenheiro não era dado a galinhagens, mas teve que ir à zona em missão oficial, ou quase; representava a comissão organizadora do Congresso Brasileiro de Obras Públicas. A pedido do Diretor, e sob o patrocínio de generoso empreiteiro, encarregou-se de ciceronear um grupo de congressistas  interessados em correr o trecho. Coincidiu que Célia estava lá como chefe das moças.

Toda língua e ouvidos, escutou o Engenheiro se gabar da nova obra na cidade. “É estrutural”, explicou a dois colegas que aguardavam a hora de afogar o ganso. “Vamos reduzir em dez minutos a rota leste-oeste”. O colega disse “fantástico” e Célia anotou mentalmente.

 

II

 

Uns seis meses depois chegou o primeiro convite para uma reunião na Prefeitura. Os vizinhos ouviram, um a um, que suas casas estavam desapropriadas para dar passagem à avenida. Vou chamar o advogado. Pode chamar. Desapropriação por interesse público. Está na lei.

Brigaram, brigaram e acabaram fazendo acerto para não sair sem nada no bolso. Histórias de desapropriações eram só desgraça. Séculos à espera do justo pagamento que nunca viria, alguns morando em casa de parentes.

Houve um racha. Metade desejava escrever abaixo-assinado, ir à Assembléia de luto, visitar o governador. Reclamariam – talvez pela primeira vez – contra a tirania do automóvel; em nome dele destruíam uma rua residencial, habitada por médicos, juízes, comerciantes. Rua pequena e feliz, aqui judeus oravam em paz na sinagoga e senhores de sucesso traziam os filhos para visitar o prédio em que haviam estudado, o afamado Colégio Estadual do Paraná. A outra metade queria a avenida com luzes e lojas. Orgia de brilho e luxo.

Célia na moita. Malão estava comprando uma casa para transformar em loja bacana quando o alongamento viesse.

 

III

 

A divisão aumentou. Alguns receberam a visita de corretores imobiliários que ofereciam até 50% a mais por suas casas. Dividendos do progresso. Espertos, decidiram que venderiam mas não agora. Mandava a astúcia aguardar o espetáculo da chegada das máquinas e nova valorização dos imóveis.

Quando as máquinas chegaram os corretores não reapareceram. Apareceram uns caras pálidos, de bigodinho e sapato bico fino. Queriam alugar.

Para encurtar a história, quem vendeu, vendeu barato porque a rua degenerou com o vai e vem de prostitutas, vendedores de droga e ladrõezinhos que arrancavam o cordão de ouro e saiam correndo.

Quem alugou conseguiu um dinheirinho melhor. Mas teve de agüentar perguntas da família e dos amigos porque os inquilinos agora eram donos de tunguetes, bares de má frequência.

Ninguém imaginava que ia tudo virar zona. As casas de família foram depressa substituídas pelo Bar da Rosa, o La Ronde, o restaurante Fumacinha, o Sopão das Putas, e por um clube de jogo onde, certa noite, um prefeito do Norte do Paraná perdeu no pif-paf a arrecadação municipal de seis meses. Malandros armaram o golpe das três pontas em cima dele, que saiu prometendo suicidar-se. Abriu a janela do Braz Hotel, tomou aquele ar frio na cara e mudou de ideia. Candidatou-se. Agora é deputado estadual e vice-lider da maioria.

 

IV

 

Cabe aqui uma consideração sobre a falta de limites para a decadência urbana.

Um sábio ensinou que as cidades melhoram quando ficam como estão. Há rua que nasce para ser estreita, com calçada de pedras centenárias. Alargada e asfaltada, a Cruz Machado, antiga Rua do Tesouro, só piorou. Parecia ter chegado ao ponto mais baixo de sua história como a rua das vadias, dos cafiolos e dos otários. Desceu ainda mais aos infernos quando afundou no mar de crack e de tiros na madrugada. Agora são mortos que se arrastam pela calçada no eterno delírio ambulatório de que falava São João Crisóstomo, no século V, em homilia para defender a família.

No crack ninguém quer saber de jogo de baralho, nem de sexo, muito menos de conversa de botequim. Só de dinheiro para a próxima pedra. Quer mesmo. Precisa. Sofre a urgência. Cuide-se para não passar perto dele.

E surpreenda-se. Em seu movimento de marés, a vida urbana desenvolveu a capacidade de contrariar os pessimistas e inventar a ascensão depois da queda.

O Engenheiro – não aquele da orgia na Otília, outro – anda por ai de novo. Numa planilha a equipe anota o fluxo dos veículos e em outra o movimento de pedestres. Planeja um plano urbanístico para devolver a saúde ao Centro. Vai fomentar um polo de serviços, galerias de arte, co-working, startups, hotéis boutique, soluções para uma rua sem solução.

De qualquer forma, cuidado com esse Engenheiro. Lembre do que dizia o velho Machado. Sua voz é a voz de Jacó mas suas mãos são as mãos de Esaú.

 

*

 

P.S. – Está no Velho Testamento a história da rivalidade entre irmãos gêmeos em torno do direito à sucessão no clã. Segundo os costumes seria Esaú o herdeiro, pois nasceu antes do irmão. No entanto, Jacó, instigado pela mãe, engana o pai cego à beira da morte e obtém a bênção que o confirma no lugar privilegiado. 

 

 

 

Posted on 20th maio 2021 in Sem categoria  •  1 comment