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A democracia algorítmica

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gghghg JILL LEPORE: é possível inventar o futuro?

 

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Na New York Review of Books de 8 de outubro, James Gleick resenha If Then: How the Simulmatics Corporation Invented the Future, de Jill Lepore, professora de História Americana na Universidade de Harvard e colaboradora do New Yorker. O livro recomendado começa com uma pergunta sinistra:

“Em que categoria puseram você?”

A questão remete o leitor ao romance The 480, de Eugene Burdick, escrito em 1964, que pela primeira vez falou em targeting – o método que cientistas políticos usam para agrupar eleitores de opiniões parecidas.  

No caso, 480 categorias de eleitor, definidas por região, religião, idade e outras características demográficas como “Meio-Oeste, rural, protestante, baixa renda, feminino”. Muitos leitores revoltaram-se com a ideia de poderiam ser separados em caixinhas com o objetivo doentio de vencer uma eleição. O crítico do New York Times considerou The 480 “um romance chocante” e implausível.

The 480 (que você encontra sem custo na Internet Archive Books) não era ficção. Era um roman à clef baseado na vida real da empresa Simulmatics, que trabalhara secretamente na campanha de John F. Kennedy em 1961. Burdick tinha sido um operador político e conhecia bem os fundadores da Simulmatics. As 480 categorias de que falava o romance eram um resultado do trabalho de analistas sobre uma montanha de dados adquiridos do Instituto Gallup e outras empresas de pesquisa da opinião pública.

Aqui um elogio para Lopore, considerada uma historiadora brilhante e prolífica, com um olhar atento a histórias inusuais – e esta é uma saga notável, meio cômica, meio ameaçadora, “uma história sombria dos anos 1960”, segundo ela. A Simulmatics atravessou a década atuando na Guerra do Vietnã, no movimento de direitos civis, em greves e protestos de rua.

O grande momento da empresa parece ter sido a eleição de Kennedy. Não era fácil ganhar dos republicanos. Nixon era um conservador sólido, com um pé no macarthismo outro na elite financeira. E, pela primeira vez, haveria debate televisionado entre os candidatos.

Os democratas corriam atrás de informação e estavam dispostos a confiar da Simultanics, que alugou um gigantesco computador IBM 704 da Universidade de Columbia. A coleta de dados não era fácil, principalmente entre os negros. Velhos caciques acreditavam nos tradicionais mecanismos de pressão que assustariam os eleitores de cor e não queriam briga com proprietários de jornais dos estados do sul. Os caciques políticos do Sul não queriam ver entrevistadores perdendo tempo com negros.

Apesar disso, a empresa entregou relatórios de qualidade. Uma das constatações era que os democratas não conseguiriam vencer sem o apoio do movimento dos direitos civis. Simulmatics também aconselhou o candidato a bater de frente com o preconceito anti-católico que estava minando sua campanha. Recomendou ainda a participação nos debates. “Kennedy pode fazer uso de sua capacidade de comunicação, humor, espiritualidade e entusiasmo”. JFK seguiu todos os conselhos. Os eleitores não foram manipulados nem enganados. Ninguém teve a privacidade invadida. E os democratas venceram um pleito que ficaria para a história.

O problema foi o dia seguinte. Os democratas queriam tocar a vida, não precisavam ficar contando detalhes da campanha. O pessoal da Simulmatics, por seu lado, estava sedento de glória. Queria transformar os conselhos eleitorais em fama, credibilidade, novos clientes. Mas tinha o compromisso de manter em sigilo seu trabalho.

A saída foi encontrada quando um dos analistas, que havia contribuído para os relatórios ao candidato, entrou em contato com a revista Harper’s fazendo de conta que era um jornalista desinteressado. A revista publicou seu relato em janeiro de 1961 – o mês da posse de Kennedy – com uma capa que anunciava a “People-Machine” e explicava: “Relato sobre um computador projetado secretamente para a campanha presidencial do Partido Democrático – e as consequências disso para a estratégia política”.

A matéria era uma avenida de elogios à estratégia da campanha. A certa altura citava um amigo dos donos da empresa, o cientista social da Universidade de Yale Harold Lasswell dizendo: “Esta é a bomba atômica das ciências sociais!”

O New York Herald Tribuna revelou o nome da bomba A – Simulmatics. Um jornal do interior do Oregon editorializou: “Os eleitores – eu, você, Mrs. Jones da casa ao lado e o prof. Smith na Universidade fomos transformados em pequenas perfurações em um cartão de cartolina ou alguma outra ferramenta digital que o pessoal do Kennedy está usando”.

O “pessoal do Kennedy” entrou em pânico e resolveu negar tudo. Simulmatics tentou explicar: “Máquinas nada podem fazer a não ser acelerar as comunicações”. Isso permite “restaurar a possibilidade de debater importantes temas em grandes sociedades.” Mas não era isso que a empresa pensava.

“Os cientistas da Simulmatics – observa a autora –  acreditavam que se conseguissem coletar grande quantidade de dados sobre grande quantidade de pessoas tudo, um dia, poderia ser previsto e todos, cada cérebro humano simulado, cada ato poderia ser antecipado ou mesmo dirigido por mensagens direcionadas, precisas como mísseis.”

Isso tudo aconteceu em um tempo remoto, na era pré-internet.

Agora estamos ante a realidade da campanha de Trump em 2016. Com ajuda da ciência comportamental ele dirigiu mísseis certeiros aos três principais alvos da manipulação: a comunidade afro-americana, os antigos apoiadores de Sanders, e jovens mulheres que poderiam ter algum ressentimento contra Bill Clinton vocês-sabem-porquê. Ganhou.

A vitória reforçou a ideia de que hoje um pesquisador sem sair da frente de sua tela pode compilar e cruzar informações sobre compras (dos registros do comércio), pessoas com baixo Q.I. (dos registros escolares), desempregados (arquivos da previdência social). A pergunta que se faz frequentemente é: “Tudo bem, ele tem capacidade tecnológica para fazer isso. Mas é ético fazê-lo?”

Sempre é possível dizer que essa estratégia é arma contra um mal maior, que seria a reeleição de Trump.

O assunto ganha relevância nesta época de constante ameaça à liberdade individual pelos instrumentos de vigilância tecnológica – reconhecimento facial, rastreamento de DNA –  cada vez mais apurados.

Ninguém ignora que megaempresas faturam bilhões predizendo e manipulando nosso comportamento como consumidores e como eleitores.

É recente o episódio da entrega de 50 milhões de perfis do Facebook à empresa Cambridge Analytics, que os transformou em programas de disparos em massa pelas mídias sociais. Disparos de informações e imagens manipuladas, fakenews, para criar animosidade em grupos étnicos (os supremacistas brancos), religiosos (evangélicos pentecostais) ou sociais (desempregados, trabalhadores domésticos).

Para isso funciona a simulação.

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P.S. – Simulmatics = simulation + automatics.

 

Posted on 1st novembro 2020 in Sem categoria  •  No comments yet

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