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Rondó do time sem vergonha, da organizada irada e do treinero endividado

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Cena I

(Sala da presidência do clube. Armários envidraçados guardam os troféu, as medalhas, as fotos autografadas, testemunhas de tantas glórias. Em minha mesa de trabalho, eu,  presidente, aceito mais um cafezinho trazido pelo garção. Livro-me do ar cansado e transmito a ordem que a secretária aguardava ansiosa.)

 

-Ligue para o empresário!

A ligação é feita. Falo para ele vir correndo.

Estamos numa puta crise. A organizada invadiu o CT e pixou os muros: “Pede pra sair, Presidente!”

A oposição começou a falar em impeachment.

Mas não fujo da luta – estou ouvindo o melhor gerenciador de crise do marcado. Dou uma resposta forte e corajosa: demito o treinero.

Papo reto, empresário: preciso de você.

Ele diz: claro, imediatamente. E elogia meu poder de decisão. Faço ar modesto. É isso aí: resposta rápida, providências cirúrgicas, visão estratégica.

Tenho outro treinero. Argentino.

Que traz sua equipe técnica – treinador de goleiros, estatístico gordinho (para parecer com o cara que muda o jogo em Moneyball), psicólogo, avaliador de desempenho, um espião que opera drone. E novos boleiros.

Um é muito bichado, outro muito marrento, mas o terceiro é bom de bola.

Bom mesmo. Um falso nove de 22 anos que lembra o Tostão da seleção de 70. Joga de cabeça alta, dribla para os dois lados, não erra lançamento de 40 metros e está sempre livre para receber. Não é só isso: acerta 87% dos passes, faz média de 0,6 gol por partida.

Holofotes todos na joia, principalmente após um hat trick contra o Londrina. Manchetaço na Tribuna, convite para o Bem, Amigos, espanto nacional com os 12 pontos que o time conquista em quatro jogos. Estou a um ponto do G-4.

A alegria fugaz dura o tempo de um carnaval.

Na Quarta Feira de Cinzas chega o empresário. FDP cúpido, carrega o menino para a Ucrânia.

Não é ganância, sou parceiro, mas temos que aproveitar o momento.

E se um louco quebra a perna dele?

Heim?

 

Cena II

 

Os boleiros custam caro, começa a faltar dinheiro.

Salário atrasado é a maior causa de desconforto muscular no futebol.

Tenho agora um time inteiro de chinelinho, no come-e-dorme,

Hospedado no Departamento Médico.

Mas sou presidente, coragem não me falta, como nunca faltou ao Havelange meu ídolo.

Mando o treinero chamar o sub-20. É sangue novo, raça, solução caseira.

Vêm a primeira derrota. A segunda. A terceira.

Vergonha! Time sem vergonha! Vou te pegar, treineiro!

 

Cena III

 

Meu ataque de coragem persiste. Chamo a rádio, a TV do clube. Aviso ao mundo: o treinero está prestigiado!

Pronto – recebeu o beijo da morte.

De madrugada, cabisbaixo mas com 50% da rescisão na conta, o treinero se esgueira para o aeroporto.

Não é por medo da organizada irada. Teme os parceiros do tunguete que ameaçam quebrar a mão dele se não pagar o que perdeu no pif.

 

Cena IV, Epílogo

 

Crise. Agora estamos no G-4 de baixo.

Intrigas, calúnias, troca de ameaças no whatsapp. Os cornetas se assanham. Um juiz (notório torcedor do time deles) manda penhorar as rendas do clube.

De novo no jornal a lista de conselheiros pró impeachment.

Mas eu continuo presidente. Não renuncio. Não abdico de meus direitos, nem renego meu dever com a camisa mil vezes campeã. Chamo a secretária.

-Ligue para o empresário.

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Posted on 29th outubro 2020 in Sem categoria  •  No comments yet

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