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A Boca Maldita machista? Errado: Curitiba toda, do Bacacheri ao Portão, era machista

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Trecho de “Curitiba, a Fria”, de Fernando Pessoa Ferreira em Livro de Cabeceira do Homem, Ed. Civilização Brasileira

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Não era uma cidade qualquer. Era Curitiba, a capital mais europeia do Brasil. Na segunda metade do século passado ela começava no Bacacheri, terminava no Portão. Para além as chacrinhas e colônias de polacos.

O Paraná deixou de ser a 5ª. Comarca de São Paulo em 1853, mas faltou cortar direito o cordão umbilical. O poder econômico paulista ficou nas agências bancárias e filiais de grandes empresas naquilo que o historiador Samuel Guimarães da Costa chamou de imperialismo paulista.  Laços de família reproduziam o patriarcalismo da matriz.

ECOS DO SIMBOLISMO

Aqui, ainda ecoavam em ruas de pedra os passos dos poetas simbolistas, Emiliano Perneta o príncipe deles. O Vampiro caminhava pela madrugada ao lado dos jornalistas Mauri Furtado e Roberto Muggiati, e do trombonista Raul de Souza anotando as façanhas do abominável Nelsinho. Beppi e seus Solistas enchiam de boleros e sambas a noite da Caverna Curitibana – vinham homens de todos os bairros e de cidades do interior dançar no melhor taxi-girl do Brasil.

Todo ano alguém sugeria sem sucesso que o Colégio Santa Maria, tido por muitos como o melhor da cidade, aceitasse alunos do sexo feminino. Por que só meninos? Porque era assim na França, em 1817, quando o padre Marcelino Champagnat fundou o Instituto dos Irmãos Maristas das Escolas (Fratres Maristae a Scholis – F.M.S).

Nos bailes do Clube Curitibano ou do Círculo Militar as moças sentavam-se às mesas com a família, uma tacinha de meia-de-seda (leite condensado, vodca e licor de cacau) durava até o fim do baile. Só umas poucas metidas a modernas iam para o bar beber uísque on the rocks com os rapazes. No dia seguinte estavam mal faladas.

As faculdades mais procuradas da Universidade Federal do Paraná, Direito, Medicina e Engenharia, formavam poucas mulheres. Havia duas engenheiras na turma de Engenharia de 1952. Na Faculdade de Direito as mulheres representavam talvez dez por cento. A porcentagem se invertia desproporcionalmente na Filosofia, onde se preparavam professoras. Dez a um para as mulheres.

Em consequência, os plenários da Assembleia Legislativa e do Tribunal de Justiça exalavam testosterona. Nos gabinetes do Poder Executivo havia algumas mulheres, mas assessoras e secretárias. A maioria ficava em casa, criando os filhos e aplicando os conhecimentos adquiridos na famosa Educação Familiar do Paraná, apelidada “Caça Marido” ou apenas “Caça”. Era um colégio de freiras que funcionou na rua Bento Viana, de 1953 a 1986, assim chamado, segundo o jornalista José Carlos Fernandes, por ensinar a servir à francesa e a bordar ponto-cruz.

MACHISMO ESTRUTURAL

Uma cidade perdidamente machista. Estruturalmente. De fora era mais fácil descobrir isso, como fez o jornalista e poeta pernambucano Fernando Pessoa Ferreira, durante algum tempo morador de Curitiba e diretor do Teatro Guaira. Ele escreveu para o “Livro de Cabeceira do Homem”, da Civilização Brasileira, um artigo intitulado “Curitiba, a Fria”.

“Ao transitar pelas ruas de maior movimento depois das 10 horas da noite vê-se apenas homens, todos de terno escuro e engravatados, enxameando ao longo das calçadas e nas portas dos cafés, que são os redutos da maledicência política, esportiva e erótica da população local. Da população masculina, pois mulher curitibana que se preza não toma cafezinho na rua, mesmo acompanhada por escolta do outro sexo.”

Nada mais natural, portanto, que o legendário Anfrísio Siqueira, fundador e presidente vitalício da Confraria da Boca Maldita, definisse a instituição como exclusivamente masculina. Nem pensou em levar mulheres ao jantar realizado há mais de 50 anos para entrega das comendas de Cavalheiro da Boca Maldita. Anfrísio, de tradicional família lapeana, respeitava os mitos conservadores.

NOVA GEOGRAFIA

A Boca Maldita mudou a geografia do centro, dominado durante décadas pelo Café Alvorada, na Travessa Oliveira Belo, onde tomavam cafezinho o professor Bento Munhoz da Rocha, o major Fernando Flores ou o deputado Lauro Portugal Tavares. Quando o café lotou demais e a travessa ficou apertada, houve um êxodo para o lado norte da avenida Luiz Xavier. Um grupo ficava na esquina da Ébano Pereira, em frente ao antigo Banco Bamerindus. O próprio presidente e fundador Avelino Vieira dava um plantãozinho com seu cigarro de palha.

Outro grupo, liderado pelo Anfrísio, reunia-se em frente da Galeria Tijucas. Eram advogados e juízes na saída do forum, mais o cartorário José Nociti, o projetista Orlando Carlini, o grande goleiro atleticano Ivan Pereira, professores, médicos e jornalistas. Havia também comerciantes, corretores imobiliários e espiões do Palácio – gente escorregadia que passava de roda em roda para colher boatos e levar maledicências aos ouvidos gulosos do governador e secretários.

INFORMAÇÕES & NEGÓCIOS

Um especialista em marketing descobriria rápido que a Boca não era um simples ponto de encontro, mas uma agência de informações e um poderoso lobby de negócios. Às vezes o doutor Francisco Cunha Pereira decidia ali o tema do editorial da Gazeta do Povo ou a nota que não podia deixar de sair na coluna social do Dino Almeida. Paulo Pimentel, dono da TV Iguaçu e do Estado do Paraná, mantinha-se atualizado através do Mussa José Assis, diretor de redação. E Abdo Aref Kudri, diretor do Diario Popular e presidente da associação dos jornais, passava na Boca para ouvir novidades e marcar reuniões. Abdo tinha canal direto com o governador para transmitir a preocupação da mídia com algum assunto relevante.

Em novembro a sala do Anfrísio virava centro de decisões para o jantar do dia 13. Quem merece uma comenda? Quem fará o discurso? O advogado Renê Dotti, maravilhoso orador? O deputado Alvaro Dias, candidato a governador? Qual ministro do Supremo receberá homenagem? Será que o doutor Antonio Ermirio de Morais vem?

A BOCA NÃO PERDOA

Em 1973, estreou no Teatro Paiol, o musical “Cidade Sem Portas”, escrito por mim e pelo Paulo Vítola. A primeira ideia para a peça veio do Jaime Lerner, prefeito da cidade. “E preciso contar a história de Curitiba de um jeito leve que todo mundo goste” – exortou ele, um apaixonado por musicais do cinema e da Broadway.

O roteiro foi feito com supervisão da professora Oksana Burushenko, do Departamento de História da UFPR. Detalhes pitorescos e picarescos da história da cidade inspiraram a belíssima trilha sonora do Paulinho, onde se destacava o samba da Boca Maldita. “A Boca falou, seu doutor, tá falado; a Boca pichou, seu doutor, tá pichado.”

Paulinho Vítola virou Cavalheiro da Boca. O samba logo chegou às rádios e levou ainda mais gente ao jantar só para homens daquele 13 de dezembro, na Sociedade Thalia.

 

 

 

 

Posted on 21st julho 2020 in Sem categoria  •  1 comment

Read the response to A Boca Maldita machista? Errado: Curitiba toda, do Bacacheri ao Portão, era machista

  1. Antônio Carlos

    24 de julho de 2020

    Sabe o que tenho saudades de Curitiba ? O pão com linguiça ou vina na carrocinha do Gaúcho , refúgio nas madrugadas geladas ou o filé Grise do Bar Palácio.
    O nhoque do antigo Bologna, a bomba da Confeitaria das Famílias e o Barreado do Guilhobel ( qualquer dia você poderia escrever sobre ele ) e também sobre o final dos anos 60 e início dos 70 em Curitiba.

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