O mundo dividido
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Um texto universal de John Kani
É possível colocar no palco a história de uma nação? – perguntou no Guardian o crítico Michael Billington, justamente no dia da festa do Oscar. Para ele a resposta é positiva, e aponta como exemplo a peça “Kunene and the King”, em cartaz em Londres no teatro Ambassadors. O texto é do ator e ativista político sul-africano John Kani, um dos astros de “Pantera Negra”, aquele blockbuster da Disney que lotou os cinemas no ano passado.
A peça se passa na Africa do Sul. Faz sucesso em plena temporada do Bafta e do Oscar com seus dois personagens: Antony Sher interpreta Jack Morris, um ator velho e rabugento que espera vencer um câncer de fígado para ir a Cape Town interpretar o Rei Lear; John Kani é Lunga Kunene, enfermeiro aposentado contratado por uma agência para cuidar de Morris.
Enquanto um se preocupa com a falta de segurança do país, outro mostra indignação pelo descumprimento das promessas feitas ao povo e pela dificuldade em construir uma democracia real.
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Kani almejava a carreira de advogado. Não deu certo porque seu tio e mentor foi preso, obrigando-o a procurar sobrevivência na linha de montagem da Ford. Gaba-se que nunca mais precisou levar carro ao mecânico e, além disso, tornou-se ator, escreveu peças, liderou campanhas. É um agitador no sentido leninista da palavra: alguém que trabalha para o povo deixar de ser ignorante, oprimido e brutalmente explorado.
Pensando melhor, talvez estejamos diante de um agitador orwelliano. Alguém consciente de que num mundo de falsidade propagar a verdade é um ato revolucionário.
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“Kunene and the King” tem parentesco com “Coringa”, “Parasita”, “Democracia em Vertigem”. Fala um pouco de liberdade e muito mais de desigualdade. No palco, a situação é apresentada pelo confronto de ideias de personagens que representam um país dividido, situado na periferia do sistema político e econômico capitalista mundial.
Alguma semelhança com o Brasil, que espera o “futuro melhor” desde o fim da ditadura e a vitória de Tancredo Neves? Aqui também população está rachada entre os 10% que têm acesso a oportunidades e os 90% que sofrem nas filas do posto de saúde, nas escolas precárias, na luta pela aposentadoria magra e, se depender do ministro, incerta.
Alguma semelhança com a Coreia do Sul do filme “Parasita”, também separada entre os que têm e os que nunca vão ter? Entre os que moram nas partes altas e os que vão perder os móveis da casa na enchente anual?
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Na peça de John Kani, os personagens representam esses dois mundos – e por isso a história nos toca. Eles só se encontram no universo de Shakespeare.
O bardo sempre fez parte da vida de Morris e foi descoberto por Kunene através em uma versão de “Julius Ceaesar” no idioma isiXhosa. Há um momento (*) em que os dois relembram o discurso de Marco Antonio no enterro de Cesar, esfaqueado por Brutus. O famoso bordão “…mas Brutus é um homem honrado” é dito primeiro em inglês depois em Xhosa.
O texto é pontuado com citações do “Rei Lear”. Há uma cena de tempestade e a sugestão de que é através do profundo sofrimento que vem a iluminação de um povo.
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(*) – Está no YouTube. Digite: Kunene and the King / Julius Caesar Speech
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