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O treinero e o precariado

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A esquerda, a centro-esquerda e os democratas em geral perdem uma oportunidade de virar o jogo ao convocar o povo à luta convencional contra o fantasma de Bolsonaro – alguém que, para realçar a própria insubstancialidade, se intitula mito.

Contra ele, a disputa deve ser heterodoxa.

Incapaz do discurso racional, o mito recorre a cacos da oratória alt-right misturados com aquilo que os americanos chamam de bullshit. Ele fala muita merda – a aqui é necessário parar um pouco para entender o que é isso. Falar merda significa enrolar, iludir, dizer coisas sem sentido, fazer preleção de treinero de clube da série C. Ameaçado de cair. Na síntese de Harry G. Frankfurt, falar merda indica a intenção de enganar. É parte de um continuum, informações sequenciais e ininterruptas onde a mentira e a embromação se apresentam, às vezes, de forma pretensiosa, arrogante, “com a autoridade de um governo que durante a pandemia não poupou esforços para salvar vidas” (alguém acredita que Bolsonaro não poupou esforços para salvar vidas?). Outras vezes como choque de irrealidade: “No meu governo extirpamos a corrupção sistêmica que existia no país” (alguém confirma que a corrupção foi extirpada?).

Falar merda é basicamente descrever falsamente uma ideia, opinião ou situação. Por exemplo, ele pode enunciar um sentimento ou desejo que não sente nem deseja realmente. Mas convém lembrar que, ao dizer uma mentira ou distorcer um fato, ele distorce algo mais. Ele distorce o que está falando – isto é, o estado de coisas a que se refere no discurso – e fazendo isso ele não pode evitar distorcer seu próprio pensamento. Assim, ao prometer o pagamento de um 13º salário do Auxílio Brasil para as mulheres chefes de família a partir de 2023 ele ao mesmo tempo relata o dinheiro que tem no Orçamento e revela a convicção de que acredita que de fato tem aquele dinheiro. Se a mentira funcionar, a vítima é enganada duplamente, tendo uma falsa informação sobre o que há no Orçamento do mentiroso e o que existe na cabeça dele.

O cara corre perigo de perder a eleição porque fala merda sobre questões vitais. Há pouco, ele garantiu: “O desemprego caiu 5%”. Ao dizer isso, ele 1) – Informa que o desemprego diminuiu; 2) – Da a entender que acredita nessa besteira; 3) – Omite, ignora, invisibiliza a tragédia do precariado. O termo é um neologismo para essa nova forma de proletariado informal, terceirizado, transformado em Pessoa Jurídica, explorado pela precarização, desregulamentação das relações de trabalho, perda dos direitos sociais do proletariado industrial. Segundo o IBGE, o precariado atingiu recorde de 39,3 milhões de pessoas no segundo trimestre de 2022. Está na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad).

Todo mundo conhece algum entregador do iFood, motorista de Uber, empregado no setor privado sem carteira assinada, empregado doméstico sem carteira, trabalhador por conta própria sem CNPJ. Sua existência parece provar que há um plano para reimplantar o sistema de castas. Ele é um brasileiro que não tem salário fixo, férias e folgas remuneradas, nem 13º salário, nem direito à aposentadoria. É honesto dizer que ele está “empregado”? Ou é falar merda?

Pois é. Há 39 milhões de pessoas esperando que alguém comece a brigar pela volta dos direitos sociais dos trabalhadores.

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P.S. – O Millor escreveu que os dirigentes, quando mais ignorantes e vulgares, mais duram no poder.

Posted on 5th outubro 2022 in Sem categoria  •  No comments yet

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