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O dia em que não quis fazer uma visita e trocar ideias com Lygia Fagundes Telles

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ghghg Cada capa de Eugênio Hirscht é uma obra prima. Nesta parece que ele caprichou ainda mais.

 

 

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Avalio a repercussão da morte de Lygia Fagundes Telles com certo desapontamento. Esperava muita comoção. Cada brasileiro com curso secundário completo tem obrigação de chorar essa perda. Morreu uma mestra da literatura, a autora traduzida em quinze línguas que todo ano está no Enem, a escritora que combinou o feminino com o político naquele momento de medo nacional e não teve medo – mergulhou com força nas personagens que inspiravam um mundo novo, onde as mulheres são capazes de tudo em todas as áreas. Até de vencer uma ditadura.

O romance “As Meninas”, de 1973, tinha algum tipo de parentesco com “O Grupo”, de Mary McCarthy, publicado dez anos antes, e vinte e quatro meses na lista de mais vendidos do New York Times, pela temática e principalmente pelo frescor, a inteligência, a valentia do texto.  Ignorei que Lygia não enfrentou a ferocidade dos críticos como aconteceu com “O Grupo”. Norman Mailer disse que aquilo não passava de “um romance trivial escrito por uma mocinha”, impregnado de um “perfume comunal, mistura de Ma Griffe com gel contraceptivo”. Aqui no Brasil, longe de Mailer mas perto do DOI-CODI, Lygia foi corajosa bastante para incluir críticas pesadas à ditadura no auge do AI-5. A descrição crua, minuciosa, da sessão de tortura num subterrâneo da repressão vale por cem editoriais.

Descobri novos jeitos de escrever em “As Meninas”, que encontrei já na terceira edição da José Olímpio Editora, com capa de Eugênio Hirsch (nascido em 1923, como Lygia). Em folhas de papel-lauda, copiei trechos para sentir as pausas e a melodia da narrativa. Era um dos editores do suplemento de domingo do Estado do Paraná. Na capa do caderno publiquei uma resenha meio impressionista sobre aquele livro romântico e subversivo, aquele português cheio de invenções e influências (achei) de James Joyce e Jack Kerouak. A página do Estado ficou atraente e mereceu uma carta da autora; em sua caligrafia bonita elogiou minha acuidade literária. Acuidade, heim? “Você levantou questões importantes sobre a literatura atual e o meu trabalho”, escreveu Lygia agradecida e convidando para uma conversa. “Espero poder trocar ideias com você”.

Trocar ideias? Imagine. Eu não tinha uma única e anêmica ideia para oferecer à dona de tanta criatividade. Nem era capaz de qualquer observação inteligente sobre o psiquismo das personagens, o desenvolvimento da trama, muito menos sobre a mensagem, uma coisa que estava na moda e devia ser descoberta e analisada nas entranhas da obra literária.

A carta de Lygia está perdida entre as camadas geológicas dos guardados. Uma primeira mexida nos papeis não teve sucesso. Transcrevê-la agora seria importante primeiro para mostrar aos amigos que não estou escrevendo à toa; estou lamentando a perda da oportunidade de conversar com uma notável escritora, minha correspondente, que talvez viesse a ser uma amiga, colega, confreira, irmã em admirações. Pois concordamos que “As Meninas” é o melhor romance de Lygia Fagundes Telles, não porque seja literariamente superior aos outros, ou o mais traduzido, ou aquele que fez sucesso no cinema, mas porque foi escrito nos anos de chumbo – “um testemunho desse nosso tempo e dessa nossa sociedade”.

Um dia, anos depois, visitava minha amiga Lygia França Pereira, casada com Modesto Carone, crítico literário e tradutor de Kafka. Contei sobre a incursão pela crítica (o texto era na verdade uma resenha) e sobre a carta-convite. Modesto era amigo da escritora e do marido Paulo Emilio Salles Gomes. “Vamos lá”, propôs. Entrei em pânico. Não posso, tenho que voltar correndo para Curitiba – era desculpa para não contar que tinha medo de não estar à altura da conversa, de ser chamado a opinar sobre o fluxo de consciência e o monólogo interior, ficar boboca, cristalizado, provincianamente encolhido num canto da sala da maior escritora do Brasil.

Caridosamente não insistiram no convite. E eu fiquei sem trocar ideias com Lygia, portanto sem descobrir o que ela e Paulo Emílio conversaram enquanto escreviam a quatro mãos o premiado roteiro cinematográfico de “Capitu”, de Machado de Assis. Sem poder perguntar se ela leu Monteiro Lobato para gostar tanto de analisar insetos como a Emília na “Reforma de Natureza”. Ou como decidiu que “O mal está no próprio gênero humano, ninguém presta?”

E dizer que concordo cem por cento com ela quando diz: “Às vezes a gente melhora. Mas passa”.

 

 

Posted on 7th abril 2022 in Sem categoria  •  1 comment

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  1. Paulo Francisco de Souza Vitola

    12 de abril de 2022

    Bravo, Adherbal! Belo texto para uma grande história. Claro que seria melhor se você tivesse ido ao encontro. Conheço poucas pessoas que poderiam manter, como você, uma boa conversa com a Lygia. Bom saber que você encontrou novas formas de escrever com ela. Deu vontade de reler.

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