O livro
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A constituição de Nelson Mandela protege o menino sul africano. em demonstração para pedir o fim do governo do presidente Jacob Zuma, em abril de 2017 (Kim Ludbrook//EPA/Shutterstock)
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“A Constituição não é um instrumento para o governo controlar o povo; é um instrumento para o povo controlar o governo” (Patrick Henry)
O Brasil virou um grande laboratório de estudos constitucionais.
Pode convocar as Forças Armadas para fechar o Congresso e o STF? A liberdade de expressão prevista no Art 5º da Constituição protege quem grita “fogo” no teatro lotado? Pode o presidente da República pedir o impeachment de um ministro do STF?
Essa discussão parece inútil mas não é. As bobagens de Bolsonaro levam mais brasileiros a ler a constituição.
São asneiras “boas”.
Uma constituição deve ser lida pelo povo. E criticada. E decorada. E citada. Influencia outras porque as boas ideias são contagiosas, como diz Jenny Uglow ao analisar “The Gun, the Ship, and the Pen: Warfare, Constitutions, and the Making of the Modern World” (O Canhão, o Navio e a Pena: Guerra, Constituições e o Nascimento do Mundo Moderno, em tradução livre), da historiadora Linda Colley. (Resenha na New York Review of Books, de 10 de junho, pag. 20). Ela mostra como, ao longo do tempo, assembleias constituintes vão buscar ideias no trabalho de outras, as vezes do outro lado do mundo.
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Vamos ao livro de Linda Colley:
A autora, professora da Universidade de Princeton, coloca o início da história constitucional na Guerra do Sete Anos (1756-1763), que começou na Europa e se espalhou para a Índia, norte e sul do continente americano e Caribe, Senegal e Filipinas. Entre guerras e revoluções desenvolveu-se para fortalecer governos estabelecidos e transformar rebeliões vitoriosas em governos legítimos.
Uma constituição basicamente é um documento acima das leis, que define as relações entre executivo, legislativo e judiciário, assim como os direitos e deveres dos cidadãos. Deve abrigar valores considerados imutáveis, como a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Na prática, quando regimes estão preocupados em afirmar seu poder, liberdade e justiça são mandadas para o fim da lista. A crença em valores universais vem do Iluminismo, onde estão as origens dessa “nova tecnologia política”, como Colley denomina as constituições escritas.
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Colley nos leva a diferentes pontos da Córsega, Japão, Estados Unidos, China, Venezuela, Serra Leoa e muitas outras nações. Mostra-nos como acontecimentos históricos e tradições locais foram cruciais na feitura das constituições. E insiste em um ponto: a constituição é importante porque é escrita, impressa e distribuída ao povo, que a usa para garantir direitos como se fosse um escudo.
O livro tem poucas fotos. Uma delas é da manifestação em Pretória (acima) em que um jovem protege o rosto com um exemplar da constituição assinada por Nelson Mandela em 1996. Em outra, uma estudante russa protesta contra o governo lendo trechos da constituição. Os soldados em torno dela reconhecem o texto e deixam que ela continue a manifestação.
O livro tem 502 páginas (US$35 mais frete na Amazon), mas a leitura é fácil porque a saga das constituições é trazida para a escala humana, falando de lugares e pessoas.
Em vez de começar com a Revolução Francesa ou a Guerra da Independência Americana, a história se inicia com Pasquale Paoli, soldado e maçon, retornando à Córsega em abril de 1755, para libertar sua terra do domínio genovês e do controle francês. Em novembro ele escreveu uma constituição de dez páginas, declarando que os representantes do povo, agora “legítimos senhores de si mesmos”, depois de ter recuperado a liberdade da Córsega, desejavam “dar uma forma durável e permanente a seu governo através de uma constituição capaz de assegurar o bem estar da nação.”
Paoli foi buscar ideias em pensadores clássicos e contemporâneos e em projetos reformistas do próprio pai. Em dez anos, todos os corsos de mais de 25 anos puderam votar e concorrer a um assento na dieta – o parlamento da ilha -, uma alta proporção em relação aos outros governos da Europa. Fortalecer o cidadão era menos um princípio do que o reconhecimento da necessidade de tropas. “Se um homem não tem direitos políticos, perguntava Paoli, que interesse terá em defender seu país?”
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As primeiras constituições escritas não eram necessariamente republicanas. Henry Christophe, do Haiti, em 1811 alterou constituições anteriores, de Toussaint Louverture and Jean-Jacques Dessalines, para se declarar chefe de uma monarquia hereditária.
Posando para seu retrato em uniforme militar contra um céu tempestuoso, ele se apresentou como “um rei-soldado empenhado em defender um reino cuja independência foi garantida por uma guerra de ex-escravos negros”.
Foi um exemplo de monarquia revolucionária, decretada por “um artesão negro analfabeto, que foi o menino do tambor, depois estalajeiro, depois açougueiro, depois um general e rei auto-proclamado.
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Mandatários se reestabeleceram no poder após a Guerra dos Sete Anos através de projetos constitucionais. Em 1765, três anos após o golpe e a morte de seu marido Pedro III, Catarina, a Grande, gastou dezoito meses – levantando todos os dias entre quatro e cinco horas, suportando problemas de visão e dores de cabeça – para compilar seu Nakaz, uma agenda para modernizar as leis do Império Russo. Buscou inspiração em importantes textos do Iluminismo: Dos Crimes e Punições, de Beccaria (1764), A Enciclopédia, O Espírito das Leis, de Montesquieu, que ela chamou de “livro de orações de todos os monarcas com algum bom senso”.
Catarina precisava fortalecer sua posição. Como “mulher usurpadora” enfrentava insinuações sexuais e ameaças pessoais e políticas. Governava um país imenso em guerra e consumido pelas dívidas. O Nakaz reafirmava o poder da imperatriz para fazer e rejeitar leis; a Comissão Legislativa encarregada de discutí-lo era inovadora, reunindo delegados de todo o império, inclusiva mulheres proprietárias de terras e camponeses.
Colley observa que “ao contrário dos constituintes reunidos em Filadélfia, nem todos os constituintes de Moscou eram brancos e nem todos eram cristãos”.
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Na China, a Dinastia Qing contribuiu para inundar parte do globo com uma tempestade de papeis. Um exército de professores e funcionários trabalhou dezoito anos para elaborar os Tratados Gerais do Imperador Qianlong – uma fonte de referência para funcionários a cargo dos territórios recém conquistados e uma forma de divulgar seu poder. Foram publicados em 1787, o mesmo ano em que se trabalhava no texto da Constituição Americana.
Os temas, tanto quanto os governantes, pesam na hora de definir regras constitucionais. Isso é particularmente verdadeiro, observa Colley, para a Inglaterra, onde “devido aos limites do poder real, as decisões não são sempre, nem principalmente, de cima para baixo. O poder real foi reduzido pela Revolução Gloriosa de 1688 e pela Carta de Direitos que assegurava eleições livres e alguns direitos civis. Apesar disso, Tom Paine, um dos muitos arrecadadores de dinheiro para financiar a Guerra dos Sete Anos, estava convencido que “monarquias eram congenitamente viciadas em guerras” e tornou-se um poderoso advogado das constituições escritas. Paine não olhava para os textos contemporâneos mas para a Magna Carta, objeto de um culto revivido e texto fundador das liberdades civis, repetidamente citado pelos grupos que exigiam mais direitos, como os Cartistas de 1830 e 1840.
Na narrativa de Colley, Paine é o “homem da Carta”, que trabalhava em três frentes: convencimento das bases, respeito ao passado e propagação e reciclagem de ideias. Em Senso Comum, publicado em 1776, Paine recomenda que uma assembleia, composta por dois representantes de cada um dos treze estados “dê forma a uma Carta Continental, ou Carta das Colônias Unidas”, inspirada na Magna Carta da Inglaterra.
Doze anos depois, no longo verão de 1787, a maioria dos delegados se reuniu na Filadélfia para fazer o texto final dos Artigos da Confederação elaborados durante a guerra revolucionária. Uma vez que o esboço estava concluído, Colley explica, era necessário ratificá-lo e imprimi-lo. E, principalmente, disseminar os Papeis Federalistas através de jornais, revistas e republicações por todo o país e o mundo.
A constituição dos Estados Unidos era ao mesmo tempo um modelo e um mau exemplo. De um lado, ofereceu níveis excepcionais de democracia e oportunidades para os homens brancos. De outro lado, contribuiu para legitimar a apropriação de terras indígenas para construir o império americano.
Quando o povo cherokee, alarmado com os invasores brancos, realizou uma convenção em 1827, e proclamou as fronteiras de seu território, o documento foi rapidamente declarado ilegal tanto pelo governo dos Estados Unidos como pela legislatura da Georgia, onde vivia a maioria dos cherokees.
“As ideias expressas pela letra impressa, observa Colley, podiam ser rapidamente postas de lado por aqueles que dispunham de maior poder militar”.
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As primeiras constituições garantiam direitos mas quase sempre excluíam certas categorias, particularmente mulheres, negros e indígenas. Uma das exceções foi o Plano de Iguala, editado no México em 1821. Ele selecionou direitos e garantias da constituição americana e especificou: vale para todos os habitantes da Nova Espanha, sem distinção entre europeus, africanos ou índios, que terão acesso aos empregos de acordo com seu mérito e virtude.
A ideia de inclusão foi copiada em outras partes do mundo, como na Irlanda, onde os católicos não tinham representação no parlamento de Westminster. E também na India, onde James Silk Buckingham e Rammohan Roy lideraram campanhas para aumentar liberdades e direitos dos indianos. Colley observa que até a primeira Guerra Mundial o tratamento das mulheres era altamente restritivo.
Napoleão não é um líder político que agrade à autora. Colley o compara ao Frankenstein de Mary Shelley – um monstro que gostava de estudar a história das antigas repúblicas mas promovia experimentos que levavam à violência e ao caos. O imperador francês declarou que “as províncias conquistadas devem ser submetidas ao vencedor através de métodos psicológicos” e por mudanças na organização administrativa. De acordo com o Estatuto de Bayonne, elaborado em 1808, após a invasão da Espanha, esses métodos de gestão seriam aplicados nos territórios espanhóis ultramarinos.
Como reação a Napoleão, as cortes espanholas encontraram-se em Cádiz para escrever a sua constituição, que estendia os direitos de cidadania a todas as etnias, das Filipinas ao Chile. A constituição de Cádiz influiu na vida desses países mesmo após a queda do império espanhol. Até aquele momento, a maior parte das constituições tinham sido elaboradas sob regimes protestantes. Isso encorajou padres do México a apoiar a nova constituição de 1824, contribuindo para sua difusão e aceitação.
Apesar disso, nos novos estados americanos, muitas constituições nasceram e morreram rapidamente: “Nossos tratados são farrapos de papel”, reclamou o libertador Simon Bolívar, “textos constitucionais vazios de sentido”. O Canhão, o Navio e a Pena não se baseia apenas em narrativas fluídas mas no movimento das ideias constitucionais. Empurradas pela guerra, teorias e modelos políticos saltam de um país para outro, de um continente para outro, levadas por jornais, livros e documentos oficiais, manifestadas em discursos, discutidas em congressos, usadas como argumento por exilados e dissidentes. Infinitamente adaptáveis, uma vez publicadas podem alimentar regimes “com material para estruturar a organização social e política”.
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Mesmo pequenos, exemplos localizados podem semear mudança. Em 1790, amotinados do HMS Bounty se refugiaram na pequena ilha vulcânica de Pitcairn com dezoito taitianos, a maioria mulheres. Quando o capitão Russell Elliott chegou lá, em 1838, encontrou uma centena de pessoas, predominantemente não brancas. Ouviu as ansiedades deles sobre a chegada de missionários, de baleeiros americanos, de negociantes, e sua queixa de que não tinham bandeira, nem governo organizado, por isso sua ilha parecia presa fácil. Elliott deu a eles uma bandeira da Grã Bretanha e rascunhou umas poucas regras; elas iam da proteção de seus recursos naturais (a primeira constituição que trata do meio ambiente), do ensino obrigatório para as crianças e do planejamento de eleições para escolha de magistrados e governador. Estes não poderiam tomar decisões “sem o consentimento da maioria do povo”. Todos os nativos da ilha acima de 18 anos, homens e mulheres, teriam direito a voto.
Essa surpreendente constituição democrática, algumas vezes citada como um “episódio picaresco” na vida do capitão Ellliott, foi, Colley argumenta, mais que um fato marginal, pois inspirou outras ilhas do Pacífico a desenvolver textos que cimentaram a unidade local. Exemplo é o código político de Pomare II no Tahiti e a constituição do Hawaii de 1840, destinada a apresentar a ilha como um estado moderno e “em consequência, não um alvo apropriado à anexação imperial que fez dela um estado americano”.
Ideias se espalham como ondas. O modelo do Hawaii pode ter influenciado a constituição da Tunisia de 1861 – a primeira constituição escrita adotada por um estado islâmico. Sem garantir o direito do voto ou a liberdade de expressão ou de assembléia, a carta declarava todos os residentes iguais perante a lei, porque eram “criaturas de Deus”. E embora confirmasse o bei de Tunis como príncipe hereditário, ele era agora obrigado a governar através de seus ministros e do conselho. Outros estados muçulmanos tomaram nota. Mesmo o sultão otomano aceitou uma constituição alterando seus poderes em 1876, e a possibilidade de efetuar reformas políticas transformou a constituição escrita em uma afirmação anticolonial – um espírito que pode ser sentido na atual constituição da Tunísia, editada em 2014, após a Primavera Árabe.
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Para nós brasileiros vale constatar que os anos 1860 foram de guerras. A guerra civil nos EUA, a guerra da Criméia, a guerra da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) contra o Paraguai, e o esmagamento da rebelião de Taiping na China. Uma vez mais, conflitos ensejaram mudanças constitucionais em várias partes do mundo. O American Reconstruction Act, de 1867, por exemplo, garantiu direito de voto aos negros, inspirou a Nova Zelândia a reconhecer o direito a voto dos Maoris homens, e indicou a James Africanus Horton, em Serra Leoa, a urgência de projetar constituições para as nações da África Ocidental que se tornavam independentes.
Mais para o fim do século, a atenção do mundo se voltou do Ocidente para o Oriente, onde a nova constituição do Japão no período Meiji foi um salto para o mundo moderno. “Uma grande potência que não estava situada no mundo ocidental, que não era cristã e que não era habitada por pessoas que viam a si mesmas como brancos” conseguiu, Colley nota, produzir um documento que combinava regras ocidentais, muitas produzidas em Londres, com continuidade histórica e a incorporação de direitos populares. A opinião internacional ligou a reforma constitucional japonesa às vitórias militares sobre a China, em 1895, e sobre a Rússia, em 1905.
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A ampla história constitucional que Colley conta em seu livro termina como começou – em conflito. Com a primeira Guerra Mundial veio a derrubada dos antigos poderes imperiais. Veio também a Revolução Bolchevique de 1917 e a Lei Fundamental das Republicas Soviéticas Russas, que abre com a “Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado”, documento que oferece um novo ponto de referência para os constitucionalistas. Muitas dessas constituições pós 1918 não deram certo – a de Republica do Weimar foi o desastre mais notável – mas a segunda Guerra Mundial e as ondas de guerras civis após 1950 trouxeram ainda mais elementos para a reflexão dos estudiosos. Desde os anos 1990, observa Colley, “o ritmo de elaboração constitucional só acelerou”.
Preservar constituições pode se tornar um culto, fazendo delas colossos cansados nestes tempos de mudança. Colley sugere que a dificuldade de emendar a constituição dos EUA é uma das razões para as “disfuncionalidades políticas e divisões” que marcaram o país nas últimas décadas. Hoje apenas uns poucos países – entre eles Israel, Nova Zelândia e o Reino Unido – não têm uma constituição escrita.
Como historiadora britânica, Colley admite que até mudar para os EUA achava constituições “profundamente exóticas” – uma frase que sugere não apenas textos “do exterior”, mas algo decorativo e desnecessário. A Grã Bretanha tem uma “constituição”, claro, mas seus elementos derivam de leis que evoluíram ao longo de séculos, em vez de um único documento. Mas atualmente muitos britânicos, incluindo ela mesma, parecem concordar com Tom Paine que escreveu em Os Direitos do Homem (1791) que uma constituição “não tem existência ideal, mas real; se não puder ser produzida de forma visível, não é nada.” Um texto escrito poderia, alguns acreditam, ter evitado a agonia do Brexit ao definir claramente os termos para o referendo, bem como evitando que decisões de nível ministerial se sobrepusessem ao interesse nacional. Poderia mesmo – sonhos utópicos – superar a pobreza e as desigualdades de raça e gênero.
Uma constituição, ainda hoje, pode oferecer ao menos a esperança de proteção do indivíduo contra o poder do estado. Esperança vã? A autora contesta os descrentes com a imagem do menino de Pretória que usa a constituição de Nelson Mandela como escudo.
A foto resume a melhor definição para um mundo justo. É aquele em todos obedecem à lei e não ao guardião da lei.
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