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O confessionário (pequena memória da escola)

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Perdão e penitência.

 

Eram sempre iguais as manhãs de domingo. Acordava às 7, escovava bem os dentes para não ficar com mau hálito; lavava a cara com muito cuidado, o que incluía uma incursão atrás e dentro da orelha, penteava o cabelo e corria para a missa na capela do Santa Maria.

O café era depois. A barriga ronca de fome, mas receber o Corpo de Cristo exige jejum e alma leve. Na missa gostava das parábolas, mas o sermão era aborrecido e a consagração um mistério meio antropofágico. O padre levantava a hóstia e dizia: “Accípete et mandúcate ex hoc omnes: Hoc est enim corpus meum”. No Missal vinha a tradução: “Tomai e comei todos dele, porque isto é meu corpo”.

Com voz de baixo profundo, confirmava: ia nos dar (para engolir, não mastigue) o Corpo de Cristo. Três anos e cento e tantas missas depois, a informação não causava muito impacto. Mas no início era arrasadora. Praticamente todos os alunos do Santa, em particular a turma da 4ª série (hoje 9ª) tinham consciência da própria indignidade. A salvação era improvável para almas tão corrompidas pelos pecados da mentira, da inveja, da preguiça, da luxúria.

Claro que não era a condenação eterna, reservada aos grandes pecadores. Cada um tinha sua visão particular do Juízo Final e acreditava que tudo se resolveria numa temporada de purgatório. Só que a purgação ia aumentando de tamanho – um século, dois séculos…Culpa do pecado repetido, do pecador vil, do espírito fraco, incapaz de conter baixos instintos. E porque era cada vez mais difícil alcançar o tal arrependimento perfeito. Incompetência do confessor, eu acho.

No sábado, formava-se a fila de pecadores na porta do confessionário de treliça. Chegava sua vez, você ajoelhava, via a cortina da janelinha se abrir e, lá do escuro, ouvia a voz rouca:

-Você pecou?

-Pequei, padre.

-Que pecado?

-Ah, desobedeci minha mãe, não respeitei meu avô, estudei pouco.

Aí a pergunta terrível:

-E o pecado da carne?

-Sim, padre.

-Quantas vezes?

Hesitação.

-Umas três.

A voz se tornava um sussurro ansioso – e você ouvia a parte terrível da pergunta terrível:

-Sozinho ou com os outros?

De exibido respondi:

-Com as outras.

Ganhei um terço inteiro para rezar e um conselho:

-Peça perdão à Rainha do Céu. Reze com fervor para ter um arrependimento perfeito. E reze muito à noite para vencer essa tentação.

Depois da missa havia suco, café com leite, pão e manteiga para os comungantes. E futebol no pátio.

Era mais um jogo do GESM – Grêmio Esportivo Santa Maria – contra um adversário sem nome. O Visitante. Sete contra sete no campo sem grama. O Serviço de Alto-Falantes Santa Maria transmitia a partida na voz de Colmar Rocha Braga ou Dide Bettega, trabalhos técnicos de Osny Bermudes. O público torcia na arquibancada de três degraus no lado norte do campo.

Geralmente eram partidas fáceis, goleadas históricas: GESM 9, Visitante 2. A exceção eram os jogos contra o Colégio Iguaçu, equipe formada por craques do futebol juvenil. Muitos eram ex-alunos expelidos do Santa por baixo aproveitamento escolar. Traziam broncas e mágoas de antigos professores e ex-colegas.  Davam o troco, humilhavam; exibiam dribles diferentes, habilidades adquiridas no juvenil do Coritiba ou do Atlético. Mais de uma vez o amistoso das manhãs de domingo terminou em pancadaria.

A briga começou ao meio-dia na praça Santos Andrade e eu era parte dela. Acontece que o êmulo de maio zombou da minha nota e reagi:

-Me espera lá fora.

Ele tinha hora para chegar em casa.

-Hoje não. Domingo.

Durante o resto da semana a turma elaborou uma espécie de código dos duelistas. Não vale morder, não pode atirar pedra, não traga o relógio. O código só não dizia quantos rounds a briga ia durar. O chão era de pedregulho e logo de início ralei o joelho e a cara rolando de um lado para outro. Em volta de nós um bando de garotos torcia e gritava instruções. Eles não torciam nem por mim nem pelo êmulo – torciam pela a briga.

Uma eternidade depois apareceu um senhor e mandou parar. Obedecemos aliviados por não ter que ralar mais nada. Cheguei em casa com a roupa de domingo rasgada e uma marca no rosto que durou uma semana. Felizmente o outro também estava marcado.

Agora, um minuto para contar o que é êmulo. Trata-se do método para estimular a competitividade dos alunos. Funcionava assim: todo fim de mês, o irmão titular entregava a cada um a caderneta escolar com as notas e a classificação. Tinha um menino muito alto que usava óculos e tirava dez em todas as matérias, principalmente matemática, português e ciências. Era o Primeiro. Assim, com letra maiúscula. Ganhava medalhas no fim do ano, muitas medalhas, uma para cada matéria em que brilhava.

Depois vinham o segundo, o terceiro, o quarto, já com minúscula. O irmão titular então determinava os êmulos do mês seguinte. O Primeiro ia competir com o segundo, o terceiro com o quarto, o quinto com o sexto e assim por diante. Vamos ver quem passa do outro. No mês seguinte, quem vencesse seria louvado e o derrotado mereceria um comentário complacente, a menos que caísse mais de uma posição no ranking da sala. A Federação de Boxe não faria melhor.

Os maristas abandonaram há bastante tempo essa alavanca pedagógica. Alguém descobriu que êmulo significa adversário, rival, contendor e talvez inimigo. Agora a ideia é ensinar através da colaboração. Aprender junto com os outros é melhor do que aprender com o inimigo. Meu êmulo ficou durante anos atravessado na garganta. E era um ótimo sujeito.

 

 

Posted on 27th março 2021 in Sem categoria  •  No comments yet

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